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1 de fevereiro de 2010

A AMEAÇA DOS RESERVATÓRIOS CHEIOS QUE PODEM EXTRAVASAR


Quando reservatório cheio é ameaça

Benedito Braga: vice-presidente do Conselho Mundial da Água. Professor diz que abundância de água seria uma boa notícia, não fosse a ocupação desordenada de áreas ribeirinhas

Lourival Sant'Anna

31/01/2010

Abastecimento de água e energia elétrica garantidos: os reservatórios cheios seriam uma excelente notícia, não fosse a ocupação desordenada do território, que coloca populações sob o risco de inundação. Quando os reservatórios chegam a um determinado nível de segurança, as comportas têm de ser abertas, caso contrário, a água passa por cima das barragens e pode causar o seu rompimento. Portanto, a água sairá, de uma forma ou de outra. Tentar contê-la pode ser uma péssima ideia.

O irônico é que as próprias represas, ao evitar alagamentos por longos períodos de menor chuva, causam uma ilusão de segurança e atraem moradores para áreas sob risco de inundação. No Brasil, o caos é maior porque as leis sobre a gestão de águas são federais e estaduais, enquanto são os municípios que planejam - ou deveriam planejar - a ocupação do solo.

É o que explica Benedito Braga, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) desde sua criação, há nove anos, até 22 de dezembro. Braga, que reassume agora as funções de professor de Meio Ambiente na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, é também vice-presidente do Conselho Mundial da Água, e vai presidir o 6º Fórum Mundial da Água em Marselha (França), em março e abril de 2012. Entre uma reunião e outra do conselho em Delft, na Holanda, ele concedeu esta entrevista ao Estado, pelo telefone.

Existe a possibilidade de ruptura de alguma barragem?

Isso é um fato muito raro. O que muitas vezes acontece é o rompimento de represas de menor porte, construídas sem muito controle de qualidade ou por falta de manutenção. A chance de rompimento de grandes represas, tipo Itaipu ou Ilha Solteira, é muito pequena. São feitas com muito critério e têm o dispositivo extravasor, pelo qual a água sai quando a represa enche. Evidentemente que, dependendo da afluência (entrada) de água no reservatório, pode haver uma defluência (saída) maior e atingir pessoas que estão morando a jusante, ou seja, abaixo.

Em relação à Billings, quais são os riscos?

A Billings foi projetada pelo engenheiro (americano Asa White Kenney) Billings nos anos 20, e construída com todo o critério. Não há motivo para imaginar que possa haver ruptura da barragem. Os extravasores foram projetados de maneira adequada. Não existe obra 100% segura. Estou falando em probabilidade.

Os extravasores funcionam automaticamente ou alguém tem de abri-los?

Existem os dois tipos: o vertedor livre, que, quando chega a um determinado nível, a água passa por ele, e o vertedor com comporta, que você pode operar. Aí, existe um nível a partir do qual você é obrigado a abrir a comporta, porque, se não, coloca em risco a segurança: a água começa a passar por cima do corpo da barragem, pode erodir a base, solapar e ela cair.

Quando se abre o extravasor, começam os problemas para quem estiver a jusante?

Sim.

Na situação em que estão as represas, já existe o risco de afetar populações?

No mundo todo, quando é construída uma barragem grande, as inundações que eram frequentes a jusante tornam-se menos frequentes, porque ela absorve a água e a solta mais lentamente. Quanto maior for o reservatório, maior a capacidade de armazenamento dessas enchentes. Aí, a população que antes não morava no vale que inundava frequentemente, passa a observar que, ano após ano, não houve enchente. Começam a ocupar a área, constroem casas, ficam cinco, dez anos e nada acontece. Até um dia em que chove muito, o reservatório enche e a água passa por cima do vertedor, se ele for livre, ou o operador é obrigado a abrir a comporta para não ter uma catástrofe, de cair a barragem. Aí, as pessoas são afetadas.

Aconteceram casos interessantes.

A Cesp construiu no Rio Tietê, nas décadas de 50 e 60, quando nem se chamava Cesp, reservatórios para gerar energia elétrica. Esses reservatórios têm de estar cheios o tempo todo, porque a energia é o produto da altura da água do reservatório pela vazão que passa na turbina. Mesmo estando cheio, ele amortece a enchente porque ela se espraia e não sai na mesma velocidade para baixo. Quando a Cesp construiu essas barragens, teve esse efeito. Até que um dia deu uma enchente maior e os fazendeiros a jusante foram inundados, perderam o gado e moveram uma ação contra a Cesp. A Justiça deu-lhes ganho de causa. A Cesp teve de mudar a regra operacional, deixar os reservatórios mais vazios para impedir essas pequenas enchentes. O reservatório tinha uma função e passou a ter outra. Para o setor elétrico, foi ruim.

Então o problema é que essas áreas não deviam ser ocupadas?

Exatamente. É um problema social como o das áreas urbanas. Os pobres moram na beira do rio, onde ninguém quer morar, porque está sujeito a inundações. A lei de gestão das águas do Brasil envolve a União e os Estados. O município, que é o responsável pelo planejamento do território, pelos Planos Diretores, fica de fora. Claro que pode haver algum erro humano na operação, mas as chances de isso acontecer são tão pequenas quanto de romper a barragem. Houve nos anos 70 rompimento de barragem no Rio Pardo, perto de Ribeirão Preto. A comporta não abriu, a água passou por cima e a barragem rompeu. A partir daí, passou-se a tomar muito cuidado na operação das barragens.

O transbordamento da Billings pode afetar a Baixada Santista?

Não sei, não tenho estudos para esse caso, mas o que a gente pode especular é o seguinte: a Represa Billings era usada para gerar energia elétrica, até que uma disposição transitória da Constituição paulista proibiu o bombeamento de água para ela. Isso prejudicou a geração de energia. Hoje, somente se solta um fio d"água lá, para as turbinas manterem o sincronismo, mas a geração é quase insignificante. Já há bastante tempo (desde 1989) está-se jogando no canal lá embaixo pouca água. O rio (Cubatão) passou a encher com menos frequência. Pode ter acontecido uma invasão do território na mesma linha do efeito do armazenamento.

Por que foi restringido o bombeamento?

Por um problema de poluição. Como o tratamento do esgoto (do Rio Pinheiros) é muito precário, a qualidade da água é muito ruim. Tanto que ela melhorou depois que se reduziu o bombeamento.

Na Serra da Cantareira, o sr. vê um risco maior?

Não, alguns reservatórios da Cantareira são muito grandes, e as barragens, muito bem feitas. É a primeira ou segunda vez que enchem desde que foram construídos, na década de 70. Não se tem notícia de situações como essa. Nos últimos dez anos, tivemos períodos de chuvas menores. Agora está voltando ao normal, talvez chovendo um pouco mais que a média, e eles encheram. E a região é hoje bastante ocupada.

Se não fosse o problema da ocupação, esses reservatórios cheios seriam uma boa notícia?

Excelente. Significa que, se tiver uma seca no ano que vem, não vai ter racionamento. O Sistema Cantareira fornece 50% da água consumida em São Paulo. Significa que não teremos problemas para gerar energia elétrica. A Billings hoje não gera energia. Se gerasse, estava bom. Mas, quanto mais cheios Furnas, Barra Bonita, Ilha Solteira, Itaipu, melhor para nós. Podemos gerar energia com mais segurança. Se não fosse essa ocupação desordenada, essa falta de regras e de cumprimento, seria uma notícia muito boa. Fonte: Jornal O Estadão - 31/10/2010


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