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1 de março de 2010

BELO MONTE, A VIÚVA PORCINA DO SETOR ELÉTRICO

Vista aérea do Rio Xingu

Por Ivan Dutra Faria*, Exclusivo para a Agência Ambiente Energia - Há alguns anos, dando aulas em um curso de pós-graduação, ao responder a uma aluna, comparei o projeto da usina hidrelétrica Belo Monte à Viúva Porcina, inesquecível personagem vivido pela atriz Regina Duarte na novela “Roque Santeiro”. A obra do notável dramaturgo Dias Gomes tem tantas artimanhas que, em uma genial tirada do autor, Porcina foi epitetada de “a que era (viúva) sem nunca ter sido”. O mesmo ocorre com a hidrelétrica do Xingu, demolida, diariamente, sem nunca ter, sequer, começado a ser construída.

Para meu espanto, nem a autora da pergunta nem qualquer de seus colegas pós-graduandos conheciam Porcina, Roque ou Sinhozinho Malta. Uma obra-prima da cultura “novelística” brasileira era um grande nada para aquelas pessoas. Um espanto!

Eu só não contava com outra surpresa, ainda maior. Todos, absolutamente todos, já tinham ouvido falar de Belo Monte – e da pior maneira possível. Um projeto que iria destruir o rio mais bonito do Brasil! Uma usina que iria deslocar milhares de pessoas de suas casas! A índia com o facão no pescoço do engenheiro! O Sting estava lá! A Lucélia Santos também! Essas frases são apenas algumas das que foram ditas na ocasião.

O conflito de Belo Monte ocorre em uma região de expansão da fronteira agrícola na Amazônia – intensificada no Governo Militar pós-1964 – que foi abandonada pelo Estado brasileiro.

O fato gerador de conflitos é, aparentemente, o projeto de um complexo hidrelétrico, mas, na verdade, a região de Altamira acumula uma longa história de embates, envolvendo índios, madeireiros, latifundiários, grileiros, biopiratas, pequenos agricultores, entre outros, em um grande e explosivo caldeirão político, econômico e social.

A resistência a Belo Monte se sustenta, em boa medida, na difusão de informações que levam o conflito para o campo das convicções e das crenças. Os movimentos sociais que se opõem à usina se manifestam de maneira a contestar a validade das informações fornecidas pelos responsáveis pelo projeto.

Outro ponto de sustentação dessa oposição é o histórico da Usina Hidrelétrica Tucuruí, especialmente no que diz respeito às questões socioeconômicas. Os processos de relocação e de indenização dos moradores atingidos pela implantação da usina são constantemente apontados como injustos e arbitrários por aqueles que se opõem a Belo Monte.

Embora o setor elétrico se julgue em condições de rebater a maioria dessas afirmações, suas ações de comunicação social pouco ou nada adiantaram no sentido de diminuir as resistências. Um exemplo dessa contradição pode ser encontrado na edição de 7 de setembro de 2004 do The New York Times. O jornal publicou uma reportagem na qual se afirma, entre outras coisas, que, em Tucuruí, as árvores submersas emitem gases que acidificam a água e danificam as turbinas. Desse modo, a inundação da vegetação teria resultado na emissão de toneladas de gases responsáveis pelo agravamento do efeito estufa, o que faria da usina “virtualmente uma fábrica de metano”.

Ironicamente, a reportagem foi publicada após três décadas da criação da Eletronorte e no ano em que Tucuruí comemorou 20 anos do início de sua operação. A reportagem do jornal estadunidense foi montada sobre previsões não confirmadas e que há décadas vêm sendo desmentidas pela Eletronorte, inclusive por meio do relatório da Comissão Mundial de Barragens, de abril de 2000.

Esse não é um fato isolado. Apesar da confiança dos pesquisadores responsáveis pelos programas de monitoramento ambiental em Tucuruí, isso não foi capaz de evitar que Belo Monte continuasse enfrentando resistências que, quase sempre, se mostram associadas às “catástrofes” da outra usina. Fatos como esse sugerem que a desarticulação interna e a postura reativa – características setoriais, infelizmente – são determinantes para a utilização de argumentos dessa natureza.

Não há dúvida de que a questão da informação – a saber, seu controle, sua validação e sua disseminação – está no centro dos conflitos do setor elétrico na Amazônia. Esse contexto prejudica fortemente a viabilização dos projetos e desgasta a imagem do setor.

Como assinala o citado relatório da Comissão Mundial de Barragens, a maior parte dos impactos ambientais previstos para Tucuruí tinha como referência a experiência da criação de grandes reservatórios em regiões tropicais. Entretanto, esse conhecimento estava restrito a algumas represas africanas e ao lago formado em Brokopondo, na Guiana.

Os impactos não foram confirmados em Tucuruí, onde foram feitas experiências muito bem sucedidas em programas socioambientais, cujos resultados são públicos e acessíveis. Entretanto, isso não impediu que as mesmas previsões continuassem sendo equivocadamente divulgadas, ainda hoje, pela mídia nacional e internacional, com óbvios reflexos no acirramento dos ânimos.

Há vários motivos para isso. Um dos mais importantes é a falta de articulação, no setor elétrico, entre as áreas de comunicação, de engenharia e de meio ambiente. Esse descompasso prejudicou severamente a negociação dos conflitos surgidos, a partir de 1988, na região de Altamira.

Note-se que o setor caracterizou-se, especialmente entre as décadas de 1970 e 1990, por uma notável visão de planejamento de longo prazo. Essa característica provocou inevitáveis colisões com um setor ambiental em construção, às voltas com a criação de suas próprias diretrizes de planejamento e gestão – diretrizes essas fortemente influenciadas pelas experiências de países em estágios mais avançados de desenvolvimento econômico e social, bem como de representatividade das organizações sociais.

Paradoxalmente, a competência no planejamento setorial não evitou a fragmentação empresarial provocada pelo fato de a Eletrobrás não exercer um controle efetivo sobre as suas subsidiárias. O setor, na verdade, se configura como um conjunto de empresas estatais com diversos modelos de gestão, cada um deles significativamente afetados pelos arranjos políticos montados após cada eleição presidencial no Brasil.

A ausência de uma gestão unificada do Grupo Eletrobras, diferentemente do que ocorre na Petrobras, por exemplo, gera modelos distintos de negociação dos conflitos associados aos empreendimentos hidrelétricos. A esperança na intervenção do Ministério Público, atuando como elemento estabilizador de estruturas mediadoras de conflitos, tem sido frustrada pela politização e pelo protagonismo exacerbado de alguns membros desse órgão – ou, ainda, pela percepção crescente, entre os diversos atores envolvidos, de que as questões ambientais, no Brasil, caminham, inexoravelmente, para a uma discussão de natureza essencialmente jurídica.

Em uma atuação memorável, o grande Paul Newman incorporou um herói inconformado em “Rebeldia indomável (Cool hand Luke)”, filme de 1967. Nele há uma frase famosa do comandante da prisão na qual o protagonista come os ovos que o diabo cozinhou – e quem assistiu ao filme sabe a razão da alteração do ditado. Posicionada no 11º lugar da lista que o American Film Institute divulgou, em 2005, contendo as cem frases mais memoráveis dos filmes de Hollywood, ela ainda ecoa por aí. Vez por outra, ouve-se a voz do diretor da prisão dizendo: “O que temos aqui é uma falha de comunicação”. E o pior é que parece que Porcina ainda não aprendeu a lição.

Ivan Dutra Faria é mestre e doutor em Política, Planejamento e Gestão Ambiental. Também é consultor legislativo do Senado Federal

Fonte: AMBIENTE ENERGIA

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