Denúncia: Exploração de urânio em Caetité (BA) viola direitos humanos
Por Zoraide Vilasboas, para o EcoDebate
A passagem pela Bahia da Plataforma DhESCA Brasil (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), onde verificou os prejuízos causados à população e ao meio ambiente pela exploração de urânio em Caetité, no sudoeste do Estado, apontou perspectivas de que, finalmente, os poderes públicos apresentem solução para a contaminação da água, que afeta comunidades rurais, e para os efeitos de toneladas do lixo radioativo acumuladas no município.
Afinal, a “Missão Caetité”, que gerou grande expectativa na região, será concluída em breve, com a publicação de um Relatório, que incluirá recomendações às autoridades competentes de urgentes providências para a correção das irregularidades anotadas. Sua realização foi requerida à Rede Brasileira de Justiça Ambiental por movimentos e organizações populares para comprovar os impactos sócio ambientais negativos, impostos à região, e que não vêem sendo coibidos pelos órgãos públicos responsáveis.
No sertão baiano, há cerca de 750 km de Salvador, capital do Estado, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), opera a única unidade mínero-industrial de urânio em atividade no país. Ali começa o ciclo de fabricação do combustível que alimenta as usinas nucleares em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. A mineração fica no distrito de Maniaçu, entre os municípios de Caetité ( mais de 46 mil habitantes, sendo 40% na zona rural) e Lagoa Real (cerca de 14 mil, com 80% da zona rural). Em 10 anos de funcionamento, há registro de acidentes nas instalações, no processo produtivo ou com operários, ainda não devidamente esclarecidos.
SEM DIÁLOGO
A “Missão Caetité” gerou conseqüências imediatas, reacendendo o ânimo, especialmente entre as vítimas da mineração, de que ações efetivas sejam adotadas logo, em atendimento às suas reivindicações. Integrada pela relatora nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente, a professora da USP, Marijane Lisboa, e sua assessora, a antropóloga Cecilia Mello, a equipe cumpriu uma agenda intensa (26 a 30 de agosto último), incluindo a participação no seminário sobre “Segurança, Saúde e Meio Ambiente”, encontro com os poderes locais (judiciário, executivo, legislativo) e visitas às comunidades atingidas pela mineração.
A Relatoria constatou o sofrimento imposto às comunidades rurais, cuja sobrevivência está ameaçada, ouvindo críticas à omissão dos órgãos de fiscalização frente às irregularidades e ilegalidades cometidas pela mineradora, como acusou, em 2006, o relatório da Câmara dos Deputados, sobre Radioproteção e Segurança Nuclear no Brasil. Entre os problemas revelados à Plataforma, estão a contaminação do meio ambiente, a falta de controle social sobre a mineradora, os efeitos do lixo radioativo e a ausência de informações sobre os riscos radiológicos que ameaçam trabalhadores, a população e o meio ambiente.
Mas a Relatoria não pôde conhecer a mineração, porque a INB, que detém o monopólio da exploração do minério no Brasil, não autorizou o acesso às suas instalações, nem compareceu aos eventos realizados no auditório da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Caetité). Tampouco recebeu a equipe da Plataforma, que havia solicitado encontros com dirigentes da INB e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que fiscaliza as atividades nucleares. A CNEN e a INB também não compareceram à Audiência Pública, que atraiu também dezenas de pessoas de outros municípios como, Lagoa Real, Pindaí, Caculé, e Guanambi e retratou a inoperância do estado diante da dramática situação das comunidades afetadas. Gestores municipais, estaduais e federais ficaram em posição bastante desconfortável na Audiência Pública, quando tentaram minimizar e até ocultar a periculosidade da atividade com material radioativo. Já os depoimentos dos comunitários revelaram o descaso do estado, a violação de direitos fundamentais, o descumprimento das obrigações constitucionais por poderes públicos e o desrespeito à Justiça.
A Audiência mostrou que o Governo do Estado, a INB e as Prefeituras de Caetité e Lagoa Real vem cumprindo apenas parcialmente a liminar do juiz de Direito, Dr. José Eduardo Brito, de janeiro de 2009, que determina o fornecimento de água potável, saneamento ambiental e assistência à saúde dos trabalhadores e das populações do entorno da mina. O Governo do Estado recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra a liminar, mas o STF apenas cancelou a multa diária (R$5 mil), pelo descumprimento da ordem judicial, mantendo as demais decisões. Em julho deste ano, o Juiz determinou a interdição de poços tubulares que abasteciam comunidades rurais de Lagoa Real e Caetité (desde 2008, a contaminação foi confirmada em doze pontos de água e o órgão gestor de água do Estado, o INGA, mandou interditar dez).
INSEGURANÇA E MEDO
A Relatoria contou com o apoio do Núcleo de Defesa do São Francisco, do Ministério Público Estadual, que realizou a Audiência Pública em Caetité, e foi ouvida, em Salvador, pelas Comissões de Direitos Humanos e de Meio Ambiente da seção baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-Ba), obtendo também o apoio de outras entidades sócio ambientais, presentes à Coletiva de Imprensa, concedida no Fórum Rui Barbosa. A Dra Marijane Lisboa falou sobre a “Missão Caetité”, descrevendo um quadro de violação de direitos fundamentais na zona rural, como o direito à saúde, à segurança alimentar e à informação, “configurando uma situação de risco, incerteza e medo”.
A relatora da Plataforma considerou a questão do abastecimento gravíssima. Não existe água para consumo básico, nem para beber, muito menos para a produção.
Além da contaminação, está havendo ressecação dos poços, de forma rápida e a mineração requer muita água. O aqüífero está rebaixando muito e não há mapeamento das zonas de recarga. A avaliação dos produtos agropecuários não é feita. Tampouco o monitoramento do ar e estudos hidrogeológicos, autônomos, para avaliar a disseminação da radiação na água. A vida econômica das comunidades rurais praticamente acabou. Desde 2008, o agravamento dos conflitos pelo uso da água levou essas populações a requererem a aplicação da Lei de Recursos Hídricos, segundo a qual, em situação de carência a prioridade do consumo é para o abastecimento humano e animal. “É muito difícil saber o que ocorre dentro da usina, mas definitivamente a população tem o direito de conhecer o que está acontecendo”, salientou Marijane.
Quanto à saúde, enfatizou a necessidade premente de estudos e assistência à saúde dos trabalhadores e da população. Em Caetité não há um serviço de diagnóstico de câncer, e a incidência da doença é crescente. “Na cidade, existe um prédio enorme, que seria um hospital regional, funcionando apenas como pronto atendimento. E uma fundação hospitalar (Senhora Santana), com instalações e equipamentos ociosos, enquanto a região não tem um centro de oncologia, e não há plano, nem projeto de investigação da saúde coletiva, ou para implantar assistência específica a portadores de doenças causadas por radiações ionizantes”, observou.
Outro problema grave é o efeito do gás radônio, liberado pelas explosões das rochas uraníferas, quando dinamitadas. O gás é altamente tóxico e as explosões estão rachando casas de uma comunidade próxima da mina, que há anos vem tentando sair do local, mas não consegue, pois a empresa so indenizou os proprietários dos terrenos que adquiriu. A Relatora ouviu ainda relatos de tentativas de intimidação de defensores das vítimas da mineradora e suas lideranças, além de críticas à estrutura da CNEN, que concentra funções incompatíveis (fomenta e fiscaliza o setor nuclear), o que contraria a Convenção Internacional de Segurança Nuclear.
Para Marijane, é indispensável “um parecer técnico, conclusivo, amplo e confiável” para por fim a tanto sofrimento. “É impossível deixar a população neste nível de incerteza e é preciso ter os estudos independentes já!” disse. Esta é a expectativa dos movimentos e entidades socioambientais que, desde 2000, lutam pelo esclarecimento dos fatos. As denúncias das irregularidades, mais uma vez, retrataram a gravidade da situação, que levou o Ministério Público Federal a entrar com Ação Civil Pública, em julho de 2009, requerendo a imediata suspensão das atividades da INB, até ser garantida a proteção à segurança da população e do meio ambiente, e a realização da Auditoria Independente para avaliar todos os aspectos referentes ao funcionamento da mineradora.
* Zoraide Vilasboas, jornalista da Coordenação de Comunicação da Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania, é colaboradora do EcoDebate.
EcoDebate, 24/08/2010
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