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15 de fevereiro de 2011

CANTINHO LITERÁRIO: "A CARTA DO ZÉ AGRICULTOR" - UMA SÁTIRA COM MUITA VERDADE



Jarmuth,

Segue a carta do Zé agricultor.

Um abraço,
Luciano.


Carta do Zé agricultor
A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo - foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.
Prezado Luis,
Quanto tempo; né?.
Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava. Lembra; né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.
Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada, o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra; né, Luis?
Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade, que nem vocês. Não que seja ruim o sítio; aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.
Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter, porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.
Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha; mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luis?
Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, e falaram que, se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas, tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo. Mas as vacas daqui não sabem os dias da semana e, aí, não param de fazer leite. Os bichos daí da cidade sabem se guiar pelo calendário?
Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama; só comprando outra, né Luis? O candeeiro, eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.
Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele.
Bom, Luis; tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas avisei pra ele que ele estava muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Foi o que eu pensei, mas eu acho que me enganei. É que, semana passada, me disseram que ele foi preso na cidade, porque botou um chocolate no bolso, tirado da prateleira de um supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele, e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.
Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia. Aí, eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia; isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava; hoje eu jogo fora.
Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô, Luis, aí, quando vocês sujam o rio, também pagam multa grande; né?
Agora, pela água do meu poço, eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, porque, quando vou na capital, nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo. Aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do 
Promotor, porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô preocupado, Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que, se eu for multado, eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade. Aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.
Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo; vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom, porque, com vocês, e só abrir a geladeira, que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca; é só abrir a geladeira, que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.
Até mais, Luis.
Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.
(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)
Pâmela Gallas Buche
Tecnóloga Ambiental.
 
ENVIADO PELO COLABORADOR ENG. LUCIANO MENDES AGUIAR - SP

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