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Descarte do lixo e do esgoto na água são ameaças sem solução ao mangue de Santos
Publicado em maio 29, 2013 por HC
O pescador David Dias Filho, o seu “marroco”, já teve chances de morar longe das palafitas, mas voltou: “A vida à beira do mangue é mais tranquila”
A cidade que tem o maior porto da América Latina, a sede do pré-sal e vive um boom imobiliário de luxo, abriga também o que já foi chamado do maior complexo de favelas sobre palafitas do Brasil. Além do drama da habitação irregular, em Santos, litoral paulista, as invasões no mangue trazem outro problema: o descarte do lixo e do esgoto na água, uma degradação histórica do berçário marinho sem solução a curto prazo. Hoje, a única iniciativa sistemática para salvar o mangue é uma ação paliativa e quixotesca de uma organização não governamental (ONG). Por Fernanda Pires, no Valor Econômico, socializada pelo ClippingMP.
Formado por biólogos marinhos, o Instituto Eco Faxina realiza desde 2008 um trabalho voluntário de retirada de resíduos do rio dos Bugres, divisa entre Santos e São Vicente com quase 4 km de extensão e à margem do qual estão as palafitas. Em 19 ações, foram recolhidas 22 toneladas, a maior parte plástico, o grande vilão da natureza. O material de trabalho são os pequenos barcos dos próprios moradores das palafitas.
A Progresso e Desenvolvimento de Santos (Prodesan), empresa pública que presta serviços à prefeitura, diz não ter contrato que a autorize a recolher o lixo no mangue, apenas no estuário. “Quando o lixo acumula, as regionais dos bairros contratam algumas pessoas da comunidade para a remoção. Mas é enxugar gelo. Estamos desenvolvendo junto com a prefeitura um trabalho educativo para que a gente comece a tentar educar a população”, diz o presidente, Odair Gonzalez. A administração regional da zona noroeste informou que há recolhimento de lixo no rio dos Bugres, em parceria com ONGs.
Pelo menos 8 mil pessoas vivem em casebres construídos no mangue de Santos. Levando em conta que cada pessoa no Sudeste produz 1,293 kg de resíduo por dia, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, no limite são despejadas 10,3 toneladas diárias nas calmas águas do manguezal.
“Não existe lixo, existe resíduo sólido fora da cadeia produtiva. É preciso inserí-lo novamente. Hoje a molecada recolhe plástico na maré para vender. Fazendo um trabalho de reciclagem é possível dar uma renda para esse pessoal”, diz o presidente do Instituto Eco Faxina, William Schepis.
A ONG tem um projeto de construir uma usina para transformar plástico em placas ecologicamente sustentáveis. São consideradas boas concorrentes da madeira por serem impermeáveis, resistentes à umidade e recicláveis. O grupo está em busca de um galpão e de recursos para as máquinas. O projeto prevê 20 pessoas trabalhando na coleta dos resíduos, recebendo um salário mínimo. Com acesso fácil à matéria-prima e incentivos fiscais, a placa poderia ser vendida em média por R$ 30, a metade do preço de mercado, diz Schepis.
A prefeitura reconhece que o trabalho de reciclagem com geração de renda hoje é tímido. Para ficar na coleta seletiva de resíduos sólidos, o serviço atinge apenas 3% do total coletado, percentual que passa ao largo de quem vive na parte pobre da cidade.
“Temos de avançar. Temos interesse em propostas de parcerias. É uma medida superimportante de geração de renda e sustentabilidade”, diz o prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Mas ele pondera que projetos como esse são apenas uma parte da solução socioambiental: o foco é transferir as famílias para habitações regulares.
À beira do rio dos Bugres existe hoje uma conurbação de favelas de palafitas. A maior e mais icônica é a Vila Gilda, que começou a ser ocupada na década de 50, depois da construção de um dique, por gente que veio sobretudo do Nordeste para trabalhar na expansão do polo industrial de Cubatão e da Via Anchieta.
A professora e pesquisadora do curso de Serviço Social da Unisantos, Maria Cidália Ferreira, explica que esses trabalhadores permaneceram na Baixada Santista e não tinham alternativas. O dique era uma barragem alta e aparentemente segura. Sem condições de pagar aluguel e sem fiança, iniciaram a ocupação em cabanas. “O avanço para o rio era a alternativa, pois os terrenos da Marinha não eram fiscalizados pelo município”, explica.
Além das invasões no mangue terem contribuído para destruir o que restou da vegetação nativa, outro grande impacto ambiental foi a instalação do lixão do Sambaiatuba, no lado de São Vicente, em 1965. Por mais de 30 anos ali foi o único depósito de lixo daquela cidade, depois desativado.
Vê-se de tudo descartado na água, de sofá a fralda. “Aquele pedaço do rio dos Bugres é esgoto puro. É importante que a prefeitura explicite o risco de as pessoas consumirem o que está ali, como os peixes”, diz Schepis.
O cenário, porém, destoa das estatísticas: Santos lidera o ranking brasileiro da qualidade no saneamento básico. Dados compilados pelo Instituto Trata Brasil mostram que 100% da população tem acesso à água tratada e à coleta de esgoto. E que 76,76% do esgoto gerado é tratado.
Segundo o presidente da Cohab Santista, Hélio Vieira, a renda média da maioria dos domicílios nas palafitas é de um a dois salários mínimos. Mas a coabitação está crescendo. “Podemos encontrar moradias com 11 pessoas, sendo três famílias morando juntas”, afirma.
A casa de Maria de Lurdes Pereira, de 67 anos, é um exemplo. Ela tem 12 filhos, 56 netos e 11 bisnetos. Na casa de dois quartos fincada a um metro da água moram ela, duas filhas e 18 netos. As crianças recebem o auxílio federal do programa Bolsa Família, que ajuda no orçamento. Já a renda de Maria vem de uma pensão que recebe do marido e da venda de produtos de beleza. Ela mora na palafita há 16 anos, quando veio do Rio Grande do Norte para trabalhar como doméstica.
A Cohab não discrimina os tipos de moradias clandestinas. Além das palafitas, há ocupação irregular nos morros, cortiços, e favelas em áreas invadidas aterradas. “Nossa obrigação é retirar todo mundo e transferir para uma habitação regular”, diz Vieira. Mas, preliminarmente, ele calcula que sejam 8 mil pessoas em casas sobre a água, o equivalente a 21% do total de pessoas em condições subnormais de moradia na cidade, que é de 38 mil pessoas, conforme o IBGE.
Estudos acadêmicos feitos na região mostram que esses números já foram maiores, com até 21 mil pessoas morando às margens do rio dos Bugres em 2002 na parte de Santos. Na época a prefeitura questionou esse dado, considerando-o excessivo, porque o censo do IGBE de 2000 identificou 22,6 mil pessoas em todos os tipos de aglomerados subnormais. A metodologia da pesquisa “O grão do Trigo: Mapa da Exclusão/Inclusão da Região Metropolitana da Baixada Santista”, financiada pela Diocese de Santos, somou observações de vistorias técnicas e pesquisa domiciliar amostral definida a partir de fotos aéreas com contagem de telhados.
Segundo a pesquisadora Maria Cidália, a ocupação de áreas alagadas tem caído devido ao aumento da oferta de habitações populares aos moradores em risco e à migração para outros municípios, pois o custo de vida no território também é alto. “À medida que o lugar foi crescendo, especuladores se apropriaram de espaços e fincaram suas estacas. No início dos anos 2000 encontravam-se “casas” por R$ 1 mil. Hoje se sabe que o valor da palafita está por volta de R$ 25 mil. Esse dado é empírico, mas explica muita coisa”, diz a acadêmica.
Nascido no Estado do Rio Grande do Norte, o pescador José Arlindo da Silva vive há 20 anos na palafita, mas não se acostumou com o lixo. “Tem lixeira nas ruas, eu não despejo nada no rio, mas não é todo mundo que pensa assim.” Sobre a expansão clandestina, ele considera que as favelas não vão acabar. “Não tem local para todo mundo.”
O estivador Sérgio Gonçalves, morador há 33 anos do Caminho de São Sebastião, que fica no complexo Vila Gilda, também não vê mudança a curto prazo. Na casa dele o esgoto vai in natura para o rio, mas a TV é via satélite. A decisão de fincar as estacas no mangue foi para reduzir gastos. Antes, Gonçalves vivia de aluguel em uma área regular na zona noroeste da cidade. “Aqui também tem luz, água, chega correio, é um lugar normal, só não tem escritura. Quem faz as contas fica aqui.”
David Ribeiro Dias Filho, o seu “Marroco”, não tem dúvida. Um dos primeiros moradores das palafitas em Santos, ele já teve chances de morar em uma unidade financiada por meio da Cohab, mas voltou. Para ele, a vida à beira do mangue é como no interior, mais tranquila. Quase toda tarde, ele se reúne com os amigos para jogar dominó na praça.
O Ministério Público Estadual do Meio Ambiente, em Santos, atua para que não se leve saneamento e energia onde não é possível haver regularização fundiária. O objetivo é evitar mais invasões clandestinas.
O órgão tem três ações e um inquérito civil instaurados para apurar a responsabilidade pelas ocupações irregulares em áreas de mangue e cobrar medidas para realocar a população. Além da responsabilidade do município nessas ações e no inquérito, a Sabesp e a CPFL, concessionárias de serviços de saneamento básico e de energia, aparecem como tendo contribuído para que isso ocorresse, porque forneceram os serviços. “No caso da Sabesp, foi mais grave ainda porque ela forneceu água sem recolher esgoto”, diz o promotor de Justiça Daury de Paula Júnior.
O inquérito civil corre desde 1997 e as ações foram propostas em 2001 e 2002. O município de Santos foi condenado nas três ações, duas delas em caráter definitivo, mas, segundo o promotor, a solução do problema virá por meio de acordo envolvendo o Ministério Público, o município, as concessionárias e as companhias habitacionais do Estado e do município.
Procurada, a Sabesp disse que é impossibilitada de prestar serviços em áreas de ocupação irregular por causa da legislação fundiária. Em nota, a companhia informou que atua em áreas regulares ou em locais em processo de regularização em que a administração municipal solicite a instalação dos sistemas de abastecimento e esgoto sanitário.
A CPFL disse que não possui registros a respeito de inquérito sobre o assunto e que não foi formalmente notificada sobre ações judiciais da mesma natureza.
EcoDebate, 29/05/2013
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