Tempo esgotado. Basta
mergulhar nas águas turvas e ver o lixo espalhado pelo fundo do mar
para constatar que será impossível entregar a Baía de Guanabara limpa
até a Olimpíada.
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Um pedaço de plástico boia na água marrom da Enseada de Botafogo: vergonha em um dos lugares mais bonitos do mundo. Crédito: Rodrigo Thome |
Mergulhar nas águas
escuras da Baía de Guanabara dá medo, não há vergonha em admitir. A 6
metros de profundidade, bem em frente à mureta onde os clientes do Bar
Urca bebem sua cervejinha, o silêncio só é cortado pelo som das bolhas
da própria expiração e pelos murmúrios que denotam o nojo de tocar no
fundo. O cenário iluminado por um refletor é apocalíptico: colinas de
lama marrom, densa e gosmenta, se estendem em um relevo contínuo a
perder de vista. Trata-se de matéria orgânica em putrefação, proveniente
do contínuo despejo de lixo e esgoto nas águas. Sobre os morrinhos,
está disposta toda sorte de objetos. Tênis, jarras, pneus, embalagens de
plástico e de alumínio, preservativos, pincéis, tapetes, roupas,
correntes e brinquedos, tudo facilmente identificável. Mas há também
aqueles em decomposição, que se desfazem ao toque. Qualquer movimento
mais abrupto é suficiente para que a matéria orgânica se desgarre da
espessa camada de lodo e envolva tudo o que está ao redor em uma nuvem
de partículas. Aí sim a situação fica realmente assustadora, e a
visibilidade simplesmente deixa de existir na água imunda.
Leia o depoimento Bruna Talarico, repórter que mergulhou na Baía de Guanabara:
"Foram necessárias
algumas dezenas de telefonemas para encontrar alguém disposto a fazer o
que parecia inconcebível: servir de guia para um mergulho em uma das
baías mais famosas do mundo. Os motivos para as negativas eram os mais
diversos e variavam da forte correnteza, da sujeira da água aos perigos
decorrentes do material submerso. Depois de contatarmos cinco empresas
especializadas em manutenção de estruturas subaquáticas e de navios,
conseguimos reunir o grupo que topou a missão. Sob o comando de
Welington Vieira, a traineira Parcel deixou o píer da Marina da Glória,
às 8 da manhã do último dia 4, rumo ao Canal do Cunha. A bordo, o
fotógrafo Felipe O’Neill registrava os bastidores da excursão e o
repórter Ernesto Neves conferia in loco os efeitos das obras e das
intervenções para limpeza da baía. Ele notou, por exemplo, que a
dragagem entre o continente e a Ilha do Fundão, apesar de já ter retirado 5 milhões de metros cúbicos de lodo, não foi suficiente para evitar que a embarcação atolasse seguidas vezes.
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Bruna com um boneco do Patolino (superior esq.), uma mesa de plástico (à dir.), tênis, triciclo e um pneu: retratos do descaso. Crédito: Rodrigo Thome |
Rumamos para a Urca,
onde as condições de visibilidade e o menor trânsito de barcos
permitiriam enxergar o fundo com a ajuda de refletores. Foi o momento de
vestir a roupa de neoprene, calçar as nadadeiras, colocar os cilindros
de oxigênio e os óculos de mergulho. O primeiro a entrar em contato com a
água foi o fotógrafo Rodrigo Thomé, que já havia feito fotos com a
câmera mergulhada na lâmina d’água do Canal do Cunha. Desci em seguida. O
guia Roberto Bormann veio logo depois. Rapidamente deu para sentir a
água fria e o verde-musgo atravessar o tecido emborrachado e molhar a
pele — o neoprene não isola completamente o corpo do mergulhador. Seis
metros abaixo, pudemos observar e explorar, com as próprias mãos, a
degradação sofrida pela natureza. Foram quarenta minutos submersos,
divididos em dois pontos: a Urca e a Praia de Botafogo. Além do asco
provocado pela quantidade impressionante de lixo, comecei a ficar aflita
quando percebi que o respirador estava vazando uma pequena quantidade
de água para a minha boca. Nesse momento, descobri que a Baía de
Guanabara tem gosto amargo. Quando subi à superfície, outra cena
escatológica: meu rosto e minhas orelhas tinham várias placas pretas
gosmentas de sujeira. Foi nojento.”
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O panorama desolador
constatado pelos repórteres de VEJA RIO é surpreendente para quem está
acostumado a ver o belo cenário de fora, mas já é esperado por quem
navega ali. Em maio, uma regata ecológica organizada pela Escola Naval
na Marina da Glória comprovou o estado mais que crítico das águas. Em
duas horas, os participantes recolheram nada menos que 220 quilos de
lixo que flutuava na superfície, no mesmo local em que serão realizadas
as provas de vela da Olimpíada de 2016. A podridão é tal que já fez soar
o alerta vermelho entre os esportistas e os organizadores dos Jogos. No
dossiê de candidatura do Rio a cidade-sede, os governos federal,
estadual e municipal prometeram que tratariam cerca de 80% dos 18 000
litros de esgoto lançados por segundo na baía. Faltando três anos para o
acendimento da pira olímpica, é consenso entre especialistas que esse
índice não será alcançado. "Em áreas densamente povoadas no entorno,
como Maré e São Gonçalo, não existe saneamento básico nem coleta de
lixo", diz Paulo Cesar Rosman, professor de engenharia oceânica da
Coppe-UFRJ. "Organizar esse caos urbano em três anos é impossível",
constata.
Na triste realidade da Guanabara, as estatísticas comprovam o que o olfato dos cariocas percebe de longe. Dois terços
dos dejetos produzidos por mais de 10 milhões de pessoas são despejados
ali sem nenhum tratamento. Como resultado, as 53 praias em seu
perímetro são impróprias para o banho devido aos elevados índices de
coliformes fecais. Em um dos pontos mais críticos, próximo à Ilha do
Governador, 70% das amostras coletadas no último ano indicavam uma
quantidade de fezes quase cinco vezes maior que a aceitável. Outro
problema grave é o lixo. Cinquenta e cinco rios, córregos e canais
fétidos que cortam os oito municípios do entorno transportam a cada dia
aproximadamente 1 000 toneladas de detritos um combinado que vai de
embalagens descartáveis a sofás, eletrodomésticos e partes de
automóveis. Além do inegável impacto ambiental, destroços e objetos
flutuando na baía são particularmente perigosos para velejadores. "Com o
barco a 50 quilômetros por hora, um pedaço de madeira pode provocar
grave acidente", afirma o iatista Ricardo Winicki, que participou de
quatro olimpíadas. "Jamais vi um local de competição poluído como aqui.
Na Europa e nos Estados Unidos, as águas são tão translúcidas que é
possível enxergar até o fundo", compara.
As primeiras iniciativas
para tentar limpar um de nossos mais espetaculares cartões-postais
remontam à última década do século passado. Há 21 anos, o anúncio da
faxina foi feito com pompa durante a Conferência de Meio Ambiente das
Nações Unidas, a Eco 92. O controle sobre fábricas poluidoras aumentou,
mas o projeto que consumiu mais de 1,5 bilhão de reais ao longo de seis
governos fracassou vergonhosamente no que diz respeito ao controle do
esgoto. Entre 1994 e 2006, ano de seu encerramento, foram construídas
seis centrais de tratamento, que, no entanto, ainda hoje
operam em padrões muito inferiores a sua capacidade. A rede de
tubulações de 1 248 quilômetros que deveria ser implantada para
transportar os resíduos até as estações foi deixada pela metade. Desde
2007, está em andamento um novo programa orçado em 1,3 bilhão de reais
para terminar o que se abandonou pelo caminho. Mas o ritmo segue lento.
Em Duque de Caxias, onde há três anos não existia rede de esgoto, apenas
2% do previsto foi efetivamente implantado. As dez ecobarreiras
instaladas até hoje
na bacia hidrográfica da baía retiraram em 2012 pouco mais de 4 000
toneladas de lixo, o equivalente ao volume lançado pela população local
em apenas quatro dias. "O passivo que encontramos é enorme, e estamos
correndo contra o tempo para evitar um vexame internacional", justifica o
secretário estadual de Ambiente, Carlos Minc. Na atual velocidade, será
muito difícil não passarmos vergonha.
Diante de tal cenário,
começam a ser adotadas medidas paliativas que, embora tenham o objetivo
de mitigar o problema, estão longe de ser uma solução eficaz. Como não
há mais tempo para construir uma rede de saneamento abrangente, foi
iniciada a implantação de cinco Unidades de Tratamento de Rios (UTRs),
ao custo de 40 milhões de reais cada uma. As estações serão construídas
na foz de canais poluídos e removerão até 80% da imundície orgânica da
água com o uso de aditivos químicos. Dessa nova leva, a primeira, no Rio
Irajá, fica pronta em novembro e possui capacidade para tratar 1 750
litros de efluentes por segundo. Pelos cálculos do governo, a unidade
deve reduzir em 12% a quantidade de esgoto que emporcalha a baía. Em São
Paulo, a mesma técnica foi testada sem sucesso. Lá, o governo estadual
injetou 160 milhões de reais para limpar o Rio Pinheiros, mas verificou
que, mesmo após o processo, a água permanecia contaminada por outros
tipos de poluente. "É uma solução transitória. No dia em que
conseguirmos implantar o sistema de coleta, poderemos desativar as
UTRs", diz Gelson Serva, coordenador do programa de saneamento. Outro
recurso emergencial que começa a ser utilizado até o fim do ano é uma
frota com uma dezena de barcos que recolherão os detritos flutuantes.
Serão os navios-lixeiros. Pois é. O antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss (1908-2009), que, em visita ao Rio há quase oitenta anos,
disse detestar a Baía de Guanabara, teria hoje razões bem concretas para repetir tal declaração.
É bem possível que, até a realização dos Jogos, a operação implantada de afogadilho consiga melhorar a situação periclitante de hoje.
No entanto, a abordagem cosmética apenas reforça a frustração de deixar
passar mais uma excelente oportunidade de atacar o problema, que é a
falta de saneamento básico no Grande Rio, pela raiz. Outras metrópoles
se saíram bem ao combater a poluição de suas águas. Maior cidade
australiana, Sydney é um caso emblemático de como aproveitar o embalo
dos Jogos Olímpicos para se livrar da sujeira das águas de sua baía. Lá,
o problema eram os resíduos químicos lançados durante várias décadas
por empresas instaladas nos subúrbios e o lixo trazido pelo sistema de
escoamento pluvial para a baía e a região do porto. Com um investimento
de 1,6 bilhão de dólares, foi realizada durante quatro anos uma
gigantesca operação de limpeza para retirada das camadas do solo
contaminado do fundo do mar e construído um complexo sistema de
reservatórios e estações de tratamento. Um ano antes da chegada dos
atletas, os resultados já eram visíveis. É um cenário que dificilmente
se verá aqui. "Para falar em recuperação, é preciso atacar o lançamento
de esgoto e lixo. Não existe nenhuma possibilidade de mudança se isso
não for feito", afirma David Zee, oceanógrafo e professor da Uerj. O
descaso torna-se ainda mais triste quando se leva em conta que há pontos
onde a vida marinha resiste de forma comovente. Mesmo nas asquerosas
dunas subaquáticas de lodo visitadas por VEJA RIO, é possível ver um ou
outro peixinho nadando na sujeira. Um sinal de que nossa baía ainda pode
voltar à vida.
Fonte: Veja Rio
BLOG SOS RIOS DO BRASIL
ÁGUA - QUEM PENSA, CUIDA!
Um relatório corajoso sobre a situação da Baía de Guanabara, onde serão disputadas importantes provas náticas. E parece que os políticos estão mais interessados em promover a cidade maravilhosa, fingindo que o odor desagradável que exala por toda a cidade é normal. Acho que eles já se acostumaram com isso! Aproveitei esta postagem e transcrevi alguns trechos também em
ResponderExcluirmeu humilde blog, mantendo os créditos devidos.