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20 de dezembro de 2013

Declaração oficial da Relatora Especial sobre o direito humano à água e saneamento ao finalizar a sua visita ao Brasil

Visita da relatora ao Complexo do Alemão, conjunto de favelas no Rio de Janeiro
Visita da relatora ao Complexo do Alemão, conjunto de favelas no Rio de Janeiro. Foto: UNDSS/Paulo Rodrigues

Brasília, 19 de dezembro de 2013
“Lata d’água na cabeça,
Lá vai Maria. Lá vai Maria:
Sobe o morro e não se cansa.
Pela mão leva a criança.
Lá vai Maria.
Maria, lava roupa lá no alto
Lutando pelo pão de cada dia,
Sonhando com a vida do asfalto
Que acaba onde o morro principia.”
- Lata d’água na cabeça, por Candeias.
A relatora especial das Nações Unidas sobre o direito humano à água e saneamento, Catarina de Albuquerque, realizou uma missão oficial ao Brasil de 9 a 19 de dezembro de 2013 para avaliar as melhorias e os desafios que o país ainda enfrenta na realização dos direitos humanos à água e ao saneamento (1). Numa coletiva de imprensa realizada na sede do PNUD em Brasília proferiu a seguinte declaração:

“Quero expressar o meu agradecimento ao governo do Brasil pelo convite a visitar o país, e pela grande abertura e apoio demonstrados durante toda a missão, incluindo o acesso incondicional a todos os lugares que solicitei visitar. Os meus especiais agradecimentos são dirigidos aos Ministérios das Relações Exteriores e das Cidades. Também quero expressar o meu agradecimento à Equipe País das Nações Unidas no Brasil pelo apoio prestado na organização da minha visita.

Durante a minha missão tive a oportunidade de reunir-me com o Ministro das Cidades, a Ministra de Direitos Humanos, o Secretário do Ministério das Cidades e sua equipe, com diversos responsáveis do Ministério de Relações Exteriores, o Secretário Executivo do Ministério da Integração Nacional, com representantes da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, da Secretaria de Planejamento e Investimentos, da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com o Presidente da FUNASA e vários dos seus funcionários, o Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas, o Comité Técnico sobre Saneamento Ambiental do Conselho Nacional das Cidades, representantes do Ministério Publico Federal, e autoridades locais do Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Belém do Pará. Reuni-me igualmente com o Coordenador Residente e a equipe de país das Nações Unidas e representantes de companhias prestadoras e reguladoras de serviços de água e esgoto – CAESB, CEDAE, AGENERSA, SABESP, ASSEMAE, CAGECE, ARCE, SAAEB, AMAE, e COSANPA. Também tive a oportunidade de me reunir com académicos e organizações da sociedade civil e visitei várias comunidades na Baixada Fluminense e Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, na zona leste de São Paulo, em Itapipoca, Ceará e em Belém do Pará.

Quero deixar aqui um agradecimento muito especial a todas e todos os que tornaram esta missão possível. Estou pensando nas organizações da sociedade civil, movimentos sociais, líderes comunitários e académicos que me ajudaram e guiaram por zonas rurais, bairros informais e favelas. Estou principalmente agradecida aos vários brasileiros e brasileiras que conheci, que me abriram as portas das suas casas e que partilharam comigo os seus problemas, dramas e aspirações no que diz respeito à realização deste direito. Sem a sua ajuda não teria conseguido obter um retrato tão vivo da realidade no país.

Senhoras e Senhores,

No dia 28 de Julho de 2010 a Assembleia Geral da ONU, com o voto favorável do Brasil, reconheceu explicitamente o direito humano à água e saneamento. O direito humano à água e saneamento foi posteriormente reafirmado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU como sendo derivado do direito a um nível de vida adequado – o qual se encontra consagrado no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais de que o Brasil é parte. Neste contexto, e para que qualquer pessoa residente no Brasil tenha a possibilidade de se queixar à ONU em caso de violação de algum dos seus direitos sociais, incluindo do direito humano à água e saneamento, convido o governo do Brasil a ratificar com a brevidade possível o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

O direito humano à água e saneamento determina que todos devem ter direito a água e esgoto que esteja disponível, seja física e financeiramente acessível, aceitável e de qualidade para todos sem qualquer tipo de discriminação. Também obriga os Estados a eliminarem progressivamente as desigualdades de acesso tanto à água como ao esgoto – desigualdades entre populações nas zonas rurais ou urbanas, formais ou informais, ricas ou pobres. Assim, e no âmbito das negociações da agenda mundial de desenvolvimento pós-2015 na ONU, insto o Brasil a assumir um papel de liderança mundial na defesa de um futuro objetivo mundial que consagre o acesso à água e saneamento para todos. Por outro lado, convido o Brasil a defender a inclusão da “eliminação progressiva das desigualdades” na realização, por cada país, de cada um dos futuros objetivos de desenvolvimento.

O Brasil tem realizado significativos avanços na garantia do direito humano à água e saneamento. Desde o ano 2000 a porcentagem da população utilizando esgotamento melhorado aumentou de 75 para 81% e a defecação ao ar livre diminuiu de 9 para 4%. O acesso a fontes de águas melhoradas aumentou de 93 para 97% durante o mesmo período. Por outro lado, os investimentos para o setor, têm vindo a aumentar de forma muito significativa, determinando o Plansab, um investimento para os próximos 20 anos acima de 500 bilhões de reais. O extenso leque de programas sociais que têm vindo a ser introduzidos com vista a erradicar a extrema pobreza e a fome – como o Brasil sem Miséria, a Bolsa Família, e o sistema de Cadastro Único, têm sido contributos essenciais para apoiar os mais vulneráveis e excluídos.

No entanto, persistem diversos desafios, especialmente em relação ao acesso à água e saneamento de pessoas que vivem em assentamentos informais em centros urbanos e em áreas rurais, e aquelas afetadas pela seca. Igualmente existem grandes diferencias no acesso a este direito por distintos setores da população, como as comunidades indígenas e negras. Além disso existem profundas desigualdades no acesso a água e ao saneamento entre as distintas regiões brasileiras – enquanto que Sorocaba (São Paulo) e Niteroi (Rio de Janeiro) têm uma taxa de tratamento de esgoto de 93,6% e 92,6% respetivamente, em Macapá (Amapá) e Belém (Pará) a mesma é de 5,5% e 7,7% respetivamente . Por outro lado, no Nordeste 21,5% da população supria as suas necessidades hídricas de maneira inadequada. É também no Norte e Nordeste onde se registam as maiores taxas de intermitência no abastecimento de água (100% das famílias com pelo menos uma intermitência por mês na região Norte). Enquanto que nos casos em que a renda domiciliar mensal por morador é de até um quarto do salario mínimo o déficit de abastecimento de água é de cerca de 35%, o mesmo é inferior a 5% nos casos em que a renda é superior a 5 salários mínimos.

1. Marco Legal

Em primeiro lugar gostaria de felicitar o Brasil pelos grandes esforços e avanços na realização progressiva do direito humano à água e saneamento de todos no país. Ainda que a Constituição brasileira de 1988 não inclua um reconhecimento explicito deste direito, a mesma reconhece outros direitos, como os direitos à saúde, moradia ou alimentação, que estão diretamente ligados com o anterior. De qualquer forma eu veria com muito bons olhos uma Emenda Constitucional que tivesse por objetivo incluir o direito à água e esgoto explicitamente no texto constitucional.

Por outro lado, a Lei de Saneamento Básico (Lei 11.445) de 2007 incorpora uma visão de direitos humanos nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, refletidos nos princípios de universalização do acesso, transparência das ações, preservação da saúde publica e meio ambiente, qualidade e regularidade dos serviços, acessibilidade econômica e controle social. A prioridade ao uso da água para o consumo humano também está assegurada na Lei de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (Lei 9433) de 1997.

2. Planejamento

Na área do planejamento não posso obviamente deixar de parabenizar o Brasil pela recente adoção e publicação do Plano Nacional de Saneamento Básico – um processo que eu pessoalmente vinha acompanhando de perto há vários anos! O Plansab representa um passo inicial indispensável, com vista a garantir a realização progressiva deste direito para todos no Brasil, contendo uma visão para o sector para as duas próximas décadas. O Plano, resultado de um amplo processo participativo, incorpora também os princípios da equidade, integralidade, intersetorialidade, sustentabilidade, participação e controle social. Por outro lado, o Plansab alia o planejamento do sector a importantes apoios financeiros por parte do Governo federal, e prevê um financiamento do orçamento federal para o sector superior a 300 bilhões de reais – o maior valor já alguma vez desembolsado para água e esgoto no Brasil para um horizonte temporal de 20 anos. Pela minha parte, teria gostado de ver uma maior operacionalização do princípio da igualdade e da eliminação progressiva das desigualdades no Plano e espero que o mesmo seja incluído na aplicação de cada uma das metas definidas, por forma a dar atenção prioritária às camadas da população mais vulneráveis, discriminadas, estigmatizadas e pobres, bem como à eliminação da defecação a céu aberto e apoio às zonas do país que sofrem maiores atrasos na área do saneamento.

As diversas entidades e profissionais com quem me encontrei repetiram-me que a prova de fogo do Plansab vai residir na forma como os quase 6 000 municípios do país desenvolvam planos de saneamento baseados no Plano Federal. Só assim a visão contida no Plansab se tornará realidade para os cerca de 200 milhões de brasileiros e só assim poderão os municípios beneficiar do financiamento necessário para tornar o direito à água e esgoto uma realidade. Um dos grandes desafios agora consiste na falta de capacidade em termos de recursos humanos e financeiros por parte de muitos municípios, para elaborarem planos e projetos e se candidatarem a fundos federais. Os municípios mais pequenos, mais esquecidos e com menores taxas de acesso a esgoto e água são precisamente aqueles com menor capacidade de se candidatarem a fundos. Por outro lado, nos Estados em que os serviços foram concessionados a empresas estaduais, pude observar um alheamento dos municípios e uma delegação “de facto” da competência que é sua, para as referidas empresas. Assim, são necessárias medidas proativas por parte do Governo Federal para apoiar e chegar a esses municípios – os quais podem ser facilmente identificados através dos dados já existentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ou Atlas da Água da Agência Nacional de Águas. Também é indispensável estabelecer um mecanismo permanente de seguimento e monitoramento da implementação do PlanSab que esteja dotado de suficientes recursos humanos e financeiros, bem como de poderes para guiar a mesma.

3. Coordenação a níveis nacional e local e regulação

Na esfera institucional federal, existem vários órgãos com competência direta ou indireta sobre saneamento. Em 2011 havia sete ministérios e 14 programas federais nesta área, o que denota uma significativa pulverização de competências. A nível local, e durante as minhas visitas a pequenas comunidades, pude igualmente observar uma mesma dispersão de competências e falta de coordenação entre as entidades com responsabilidades no sector. Assim é indispensável uma maior coordenação política na área do saneamento a nível local, de maneira a que as ações na área da água, esgoto e higiene sejam implementadas de forma integrada.

Por outro lado, existe uma fraca regulação do sector no país. Nem todos os estados e municípios têm regulação na área do saneamento e aquela que existe é muitas vezes ainda incipiente e pouco independente do poder político. Vejo a existência e bom funcionamento de reguladores independentes como uma condição essencial para garantir e promover o direito humano à água e esgoto. Assim mesmo, insto à continuação e aceleração do processo de fortalecimento e criação das agências reguladoras de saneamento, as quais devem ser dotadas de competências para monitorizar todos os prestadores de serviços de água e esgoto, incluindo os Serviços Autónomos de Água e Esgoto.

4. Disponibilidade e qualidade da água

O conteúdo normativo do direito humano à água, impõe que esta seja de qualidade e segura, devendo poder ser bebida e utilizada sem afetar negativamente a saúde das pessoas. No Brasil quase 60% da população tem um abastecimento adequado de água, porém em 2010 38 milhões de brasileiros receberam água em suas residências que não atendiam plenamente ao padrão de potabilidade estabelecido na lei. Em 2011 esse número girou os 52 milhões de pessoas abastecidas. Durante a minha visita recebi vários relatos de pessoas que afirmavam não ter acesso a uma água de qualidade e, como decorrência desse facto, sofriam de doenças gástricas, incluindo diarreia, e de pele. Mesmo nas grandes cidades, como São Paulo ou Rio de Janeiro – onde a água prestada é supostamente de qualidade – as pessoas são obrigadas a filtrar a água ou bebem mesmo água engarrafada. No Brasil, a esmagadora maioria das pessoas que tem meios para o fazer, bebe água engarrafada.

Os serviços de água devem ser prestados de forma ininterrupta, mas outro problema com o qual fui confrontada foi o da descontinuidade na prestação dos mesmos, tendo em muitas das comunidades que visitei visto os telhados cobertos de depósitos azuis que se destinam ao armazenamento de água para consumo humano – a forma como as populações tentam suprir a falta de regularidade dos serviços. Como exemplo, escutei vários testemunhos dos comunitários de São João do Buruti, na Baixada Fluminense, de que a água chega apenas duas ou três vezes por semana. A situação se repetiria no Complexo do Alemão, onde a água chega apenas duas vezes por semana, ficando a comunidade sem água mais de um mês durante o verão. A falta de continuidade de acesso afeta não só a qualidade da mesma, como a acessibilidade da água – uma vez que obriga as pessoas a armazenar a água em casa em más condições de higiene e a água parada ser conducente à propagação do dengue.

O quadro jurídico do direito humano à água determina claramente que a garantia de água para consumo pessoal e humano deve ter prioridade sobre qualquer outro consumo – industrial, turístico ou agrícola. A lei brasileira também reconhece este importante princípio na sua legislação. Contudo recebi várias queixas da sociedade civil de que a criação de extensas áreas de irrigação, nomeadamente na região do semi-árido brasileiro, estão a secar os poços das pessoas que moram tradicionalmente nessa região, apropriando a água para a agricultura de larga escala. Existe igualmente o receio de que a transposição do Rio São Francisco não venha a cumprir o fim para o qual foi criada – nomeadamente a garantia de água para uso pessoal e doméstico, e que a mesma água seja apropriada por grandes exploradores agrícolas na região deixando as povoações sem água ou obrigando-as a migrar. É por isso fundamental que o Governo garanta que interesses comerciais e de desenvolvimento económico não se sobreponham friamente às regras de direitos humanos e que o direito à água das populações não seja posto em risco.

5. Esgotamento sanitário

Na área do esgotamento sanitário, a baixa cobertura dos esgotos não condiz com os avanços do Brasil de hoje, onde 52% da população brasileira ainda não possui coleta de esgoto, e somente é tratado 38% do esgoto gerado. O Brasil se encontra entre os 10 piores países do mundo com falta de banheiro, com 7 milhões de brasileiros defecando diariamente ao ar livre. A situação de falta de acesso a esgoto é particularmente grave na região Norte do Brasil, onde menos de 10% da população tem coleta de esgoto, isto é, quase 14 milhões de pessoas não desfrutam destes serviços. Na fase final da minha missão, em Belém, fiquei chocada ao tomar conhecimento de que a taxa de coleta e tratamento de esgoto na cidade é de 8% enquanto que em Macapá a mesma não passa de uns 3%.

O baixo investimento em saneamento básico resulta num alto custo em saúde publica, com aproximadamente 400 mil internados por diarréia em 2011, com gastos do SUS (Sistema Único de Saúde) de R$ 140 milhões, sendo que a grande parte dos atingidos foram crianças de 0 a 5 anos. O investimento no saneamento faz sentido não só em termos de direitos humanos, mas igualmente de uma perspectiva económica e de desenvolvimento. A nível mundial, por cada dólar investido em esgoto, há um retorno de cerca de 4 dólares. No caso do Brasil, há estudos que apontam para um retorno ainda maior, devido aos ganhos de produtividade e poupanças feitas nomeadamente na área da saúde.

No Brasil, algumas empresas de saneamento cobram a taxa de esgoto a pessoas que ainda não estão ligadas à rede. Outras cobram uma taxa completa (de coleta e tratamento), mesmo quando só coletam e não tratam o mesmo. Sou da opinião que esta prática, além de onerar injustamente o consumidor, não cria qualquer incentivo para os prestadores de esgoto passarem a tratar o mesmo, uma vez que já estão cobrando o serviço por completo Por outro lado pude constatar em todo o país diversas situações em que, apesar de a rede de esgoto passar à frente da casa dos munícipes, estes não se ligam à rede – fazendo com que o esgoto seja despejado diretamente em cursos de água ou em esgotos a céu aberto. Apesar desta situação consistir numa séria ameaça à saúde pública, a verdade é que estas faltas de ligação à rede decorrem maioritariamente dos altos custos de conexão , bem como do valor da respetiva taxa. Assim, o Estado tem a obrigação de adotar políticas públicas destinadas a ultrapassar esta situação – nomeadamente através da concessão de pequenos empréstimos destinados a permitir às pessoas custearem as obras de esgoto em suas casas. Por outro lado, se houver uma maior justiça tarifária no país, o peso que o pagamento da taxa de esgoto representa no orçamento familiar irá igualmente descer. Já abordarei este último tema mais à frente.

Os problemas criados pela falta de esgoto acentuam-se durante os períodos de inundação, como aquele que pude viver na Baixada Fluminense. Pude observar a inundação de ruas e canais de drenagem, bem como esgoto misturado com as águas das chuvas inundando tanto as ruas como as casas dos moradores. Vi crianças mergulhando dentro do esgoto, como se estivessem brincando numa piscina. Igualmente escutei reclamações em relação à falta de transparência no uso de recursos destinados a obras de saneamento que nunca se efetivaram.

A falta de esgoto é particularmente dramática para os 29 milhões de brasileiros que vivem nas áreas rurais e comunidades tradicionais isoladas. Segundo dados do próprio IBGE, somente 36% dos moradores da área rural têm acesso a água tratada e menos de 25% têm acesso a sistemas de coleta de esgoto considerados adequados (rede coletora e fossa séptica), podendo este esgoto ser tratado ou não, dependendo do município. Os moradores restantes, mais de 21 milhões, não possuem sequer coleta de esgoto.

Assim, nos próximos anos, deve ser dada prioridade à coleta e tratamento do esgoto, com o objetivo de alcançar a universalidade na efetivação deste direito para todos. Neste esforço deve ser tido em conta o conteúdo normativo do direito humano – nomeadamente garantido a acessibilidade financeira aos serviços. Devem ainda ser priorizadas soluções eficientes e de baixo custo, amigas do ambiente para resolver a crise de esgoto do país.

6. Participação e Controle Social

No marco da elaboração do PlanSab gostaria de felicitar a ampla participação de distintos setores da população mediante a realização de seminários regionais, audiências e consultas públicas, ouvidos os conselhos nacionais de saúde, recursos hídricos e meio ambiente. No âmbito desta consulta pública se receberam 448 contribuições, das quais 42.6% foram acatadas, integral ou parcialmente, e 67.8% considerando-se aquelas já contempladas no texto e as que foram consideradas para as fases posteriores de detalhamento e revisão do plano.

Igualmente cabe destacar a criação do Conselho das Cidades (ConCidades), no ano de 2004, de natureza deliberativa e consultiva, que constitui um exemplo de participação na gestão democrática de políticas publicas (Política Nacional de Desenvolvimento Urbano). Atualmente, o ConCidades é constituído por 86 titulares – 49 representantes de segmentos da sociedade civil e 37 dos poderes públicos federal, estadual e municipal.

Igualmente no âmbito de outros programas, como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), a participação comunitária constitui um pilar fundamental na elaboração dos projetos. No entanto, estes e outros mecanismos de participação, não são deliberativos. Segundo depoimentos de moradores do Complexo do Alemão, durante um processo de consulta no âmbito do PAC, o acesso ao saneamento foi apontado pelas comunidades como o tema prioritário. No entanto, mesmo depois desta recomendação clara por parte dos moradores, foi dada prioridade à construção do teleférico e na atualidade, o esgoto a céu aberto, o acesso muito limitado à água e a falta de recolha de lixo continuam sendo a realidade de todos os dias dos moradores do Complexo – a larga maioria dos quais nem sequer usa o teleférico.

Outro exemplo que evidencia a necessidade de fortalecer a participação ativa da população reside no fato de que a maior parceria público-privada na área do saneamento em Recife, ter sido acordada no início deste ano com uma empresa privada a qual passará a assegurar a operação, manutenção e ampliação da coleta e tratamento de esgoto do Grande Recife e de Goiana (cobrindo um total de 15 cidades e 3,7 milhões de habitants) sem qualquer consulta nem com a população e nem com os municípios afetados. Sendo a meta a alcançar a de garantir o acesso de 90% da população a serviços de saneamento, é indispensável que sejam incluídas as pessoas mais marginalizadas e vulneráveis e que este contrato não sirva para perpetuar a sua exclusão.

Assim, a participação das comunidades deve ser prévia, livre e informada, devendo a mesma oferecer verdadeiras oportunidades para as comunidades influenciarem a tomada de decisão. Deve-se ainda assegurar que, nomeadamente em caso de concessão dos serviços a terceiros, a participação e controlo social sejam assegurados durante o período de vida da mesma.

7. Assentamentos informais

Apesar dos grandes avanços alcançados no acesso à água e esgoto de grande parte da população brasileira, existem ainda setores vulneráveis da população que vivem uma realidade muito diversa, estando excluídos do acesso a estes serviços. Entre 85 e 95% da população brasileira vive em áreas urbanas, e o número de pessoas vivendo em assentamentos informais é alarmante.
Independentemente do título jurídico e localização da sua moradia, todas e todos têm direito à água e saneamento sem exceção – o qual não pode ser negado pelas autoridades.

De acordo com o IBGE, estima-se que somente na cidade de São Paulo vivam hoje mais de 2 milhões de pessoas em áreas irregulares, aglomerados de riscos ou outros assentamentos. Como nesta e noutras cidades há por vezes impedimentos jurídicos para que as redes de água e esgotos sejam levadas a essas áreas, alguns prestadores simplesmente não consideram esses moradores e excluem-nos do seu âmbito de atuação. Reitero a urgência de levar os serviços de água e saneamento, com caráter prioritário, a estes setores da população. Mesmo no caso em que os serviços são ministrados por empresas, o Estado continua a ser o detentor das obrigações de direitos humanos na área da água e esgoto, devendo garantir que ninguém é excluído ou discriminado no acesso a este direito, sob pena de violação do direito humano à água e saneamento.

No caso dos assentamentos informais, o objetivo a curto prazo na área do direito à água deve consistir em estabilizar o acesso à mesma, até que a situação seja regularizada. Nestes casos, as soluções de baixo custo – como pontos de venda de água geridos pelas empresas formais prestadoras de serviços, podem ser aceitáveis durante um período de tempo limitado. Neste contexto, chamo a atenção ao governo de Brasil para que adote todas as medidas necessárias para urgentemente garantir o acesso à água e saneamento a todas as pessoas que vivem em assentamentos irregulares. Por outro lado apelo a uma uniformização da legislação nacional para não fazer depender a realização do direito humano à água e saneamento da titularidade da terra.

8. O problema da seca

A região do semi-arido enfrenta a pior seca dos últimos 50 anos, afetando seriamente o gozo do direito a água de grande parte da população na região. Em resposta à seca o governo implementou o programa “Um milhão de cisternas”, garantindo o acesso provisório à água a várias famílias. Durante a minha visita a áreas rurais do município de Itapipoca, escutei testemunhos de famílias que receberam uma cisterna, mas questionavam a qualidade da água. Muitos deles afirmaram que a mesma não era suficiente para satisfazer as suas necessidades – especialmente devido ao grande número dos membros dos agregados familiares que visitei. Nestes casos a quantidade de água disponível por pessoa por dia não chegava aos 10 litros – o que é manifestamente insuficiente para assegurar a realização do direito O problema da seca não é infelizmente novo, e é fundamental que se adotem medidas estruturais para abordar a problemática. Pude igualmente observar que em várias casas não havia qualquer banheiro, tendo-me uma criança espontaneamente explicado que “O banheiro é o mato”.

Durante a minha visita também tive a oportunidade de visitar um dos oito SISAR existentes na região, e pude observar o seu funcionamento e sustentabilidade em pequenos aglomerados populacionais, garantindo o acesso a água e saneamento a estas populações. Este sistema poderia ser replicado em outras regiões do pais.

9. Acessibilidade financeira à água e esgoto

Um elemento fundamental do direito humano à água e saneamento consiste na sua acessibilidade financeira. O marco jurídico do direito humano não significa que estes serviços devam ser prestados de forma gratuita, mas antes que as tarifas cobradas sejam razoáveis e não obriguem as pessoas a fazer escolhas entre diversos direitos humanos – como entre saneamento, saúde ou alimentação.

No Brasil não existe qualquer regra ou diretriz a nível federal sobre tarifas de água e esgoto. Desta forma, cada Estado ou município é livre de decidir se quer cobrar tarifas para estes serviços, se quer estabelecer tarifas sociais e qual o valor das mesmas. Este sistema não permite garantir a acessibilidade financeira de todos à água e esgoto, havendo grandes disparidades no país. Por vezes, especialmente nos locais onde operam empresas com capital privado, a obtenção de lucros tem levado à exclusão dos mais pobres. O objetivo de alcançar maiores lucros tem igualmente levado à aplicação de tarifas de água e esgoto excessivas para as classes média- baixa e baixa. Em todos os locais que visitei que estão já ligados à rede de água e esgoto, as queixas que recebi sobre o preço destes serviços foram uma constante, declarando-se muitas pessoas “sufocadas” pelas respetivas contas. Algumas famílias beneficiam da tarifa social, porém associar a concessão desta tarifa a um consumo de água inferior a 10 metros cúbicos por mês pode ser manifestamente insuficiente para garantir esse direito – uma vez que as famílias mais desfavorecidas são frequentemente mais numerosas.

Assim, recomendo vivamente uma revisão do sistema tarifário em vigor no Brasil. Sugiro que o Ministério das Cidades faça uma recomendação nesse sentido que tenha em conta princípios de direitos humanos. Na minha opinião,  todas as pessoas inscritas no sistema de cadastro único, quem está isento de IPTU e quem vive em assentamentos sub-normais deve beneficiar de uma tarifa social.
Por outro lado, a tarifa de água e esgoto para a restante população não deve ultrapassar 3 a 5 % do orçamento familiar. Em Brasília e São Paulo conversei com várias pessoas que dedicam 10 ou mesmo 25% do seu orçamento familiar ao pagamento das contas de água e esgoto – o que é manifestamente excessivo e contrário a todas as orientações provenientes de várias instâncias internacionais. Este preço excessivo do serviço leva a que as pessoas não disponham de água suficiente para beber, cozinhar e para a sua higiene pessoal e doméstica.

Por outro lado, nos casos de empresas públicas de saneamento, defendo que a distribuição de lucros seja acompanhada da obrigação do Estado reinvestir a sua percentagem dos mesmos inteiramente na universalização do serviço e no apoio aos mais desfavorecidos. Não me parece aceitável que, num Estado onde ainda não há acesso universal ao saneamento e onde as franjas mais pobres da população são excluídas, os lucros obtidos no setor sejam usados para custear as despesas correntes do Estado. Devem antes ser vinculados ao setor do saneamento.

A realização progressiva do direito humano à água e saneamento para todos não se traduz automaticamente em maiores custos. As diferentes regiões e situações exigem que se considerem diferentes tecnologias. Existem tecnologias de baixo custo, podendo ser usadas soluções que assegurem acesso suficiente e adequado a curto e médio prazos aos sectores da população que vivem em zonas rurais isoladas ou em assentamentos informais urbanos Os investimentos em tecnologias de baixo custo e de grande eficiência podem reduzir de forma extraordinária a quantidade de recursos financeiros necessários à realização dos direitos. Assim, a utilização deste tipo de tecnologias – que já são utilizadas em zonas rurais de outros continentes – poderá ser uma excelente solução para as zonas rurais e para os assentamentos informais de alta densidade populacional.

Para concluir, termino a minha missão ao Brasil com um sentimento doce e amargo. Doce, devido aos progressos realizados, à visão que o governo tem para o sector e ao empenho público em apoiar os mais vulneráveis. Amargo, porque tenho presente as vozes e caras dos vários brasileiros que conheci e com quem falei ao longo dos últimos 10 dias e para os quais o direito humano à água e saneamento ainda constitui uma realidade distante e que ainda vivem na sombra de uma sociedade em rápido desenvolvimento. Acredito contudo que o Brasil está bem posicionado para fazer ainda mais progressos na realização do direito humano à água e saneamento, sendo dada prioridade às populações mais vulneráveis, pobres e marginalizadas.”
______________________
(1) A terminologia em vigor no Brasil designa de saneamento básico os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo das águas pluviais e dos resíduos sólidos. A terminologia utilizada no âmbito das Nações Unidas de saneamento, significa esgoto na terminologia utilizada no Brasil.
Informe da ONU Brasil, publicado pelo EcoDebate, 20/12/2013

http://www.ecodebate.com.br/2013/12/20/declaracao-oficial-da-relatora-especial-sobre-o-direito-humano-a-agua-e-saneamento-ao-finalizar-a-sua-visita-ao-brasil/

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