28/10/2013
Escassez de água no Semiárido: um problema de gestão
“Em Fortaleza, não teve problema de abastecimento de água no período de seca, e a transposição do Rio São Francisco não foi finalizada. Então, quer dizer, o Ceará tem água, mas a distribuição e gestão dela faz com que algumas pessoas passem sede”, afirma a coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, Cristina Nascimento.
O investimento do governo na transposição do Rio São Francisco “poderia ter sido transformado em obras de infraestrutura hídrica para sanar o problema do acesso à água” no semiárido, diz Cristina Nascimento à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone. Segundo ela, a transposição é justificada como alternativa para sanar os problemas oriundos da seca e da gestão da água, entretanto, “vai servir aos grandes empreendimentos e indústrias e jamais chegará para as famílias que vivem no interior e sofrem com a escassez”.
Hoje, a principal fonte de abastecimento de água na zona rural do Ceará são as cisternas de placas, instaladas nos quintais das casas dos agricultores. De acordo com Cristina, desde 2007 foram instaladas aproximadamente 22 mil cisternas no semiárido, possibilitando a gestão da água pelos agricultores. “Hoje várias famílias fazem a gestão da água, produzem hortaliças em seus quintais para o consumo e para comercializar, e algumas participaram de feiras agroecológicas durante todo o período de seca. Então, percebemos que as famílias, quando se apropriam da gestão da água, conseguem transformar o que, para nós, parece muito pouco em uma grande possibilidade de produção”, menciona.
Cristina Nascimento é formada em Assistência Social pela Universidade Estadual do Ceará. Atualmente é coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA pelo estado do Ceará.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Pode nos explicar o projeto de coleta de água da chuva que está sendo desenvolvido no Semiárido brasileiro? Como funcionam as cisternas-calçadão e as cisternas-enxurradas?
Cristina Nascimento – É importante destacar que essa estratégia de desenvolvimento de tecnologias sociais de convivência com o semiárido nasceu na perspectiva de se contrapor à ideia política de que o semiárido é um lugar que não tem possibilidade de desenvolvimento. As estratégias dos governos e das políticas públicas sempre foram no sentido de implantar infraestruturas hídricas nos grandes açudes, nas grandes barragens, as quais eram construídas tendo como justificativa a seca, mas as pessoas não tinham acesso à água.
Então, quando a ASA se constituiu, em 1999, propôs uma política que garantisse o acesso à água para as famílias. Foi a partir daí que surgiu a proposta de se construir um milhão de cisternas de placas, porque elas implicam uma tecnologia social simples, de baixo custo. Essas cisternas são feitas de um reservatório de cimento, construído pelos próprios agricultores, e têm a capacidade de armazenar 16 mil litros de água, que serve para o consumo humano. Essa cisterna tem a capacidade de armazenar água por quatro a seis meses no período de estiagem, para uma família de seis pessoas. Ela é reabastecida de inverno a inverno, e, mesmo em regiões em que o índice de chuva é mais baixo, é possível reabastecê-la. Mesmo com a seca do último ano, considerada uma das mais fortes, as famílias conseguiram reabastecer suas cisternas.
A cisterna-calçadão tem a capacidade de armazenar 50 mil litros de água e é conhecida pelo povo do sertão como “cisternona”. A captação da água não acontece pelo telhado da casa, como no caso das cisternas de placa, mas através de uma calçada que é construída especialmente para escoar a água para dentro da cisterna. Essa água é utilizada para a produção de alimentos. A cisterna-calçadão e a cisterna-enxurrada têm a mesma dimensão, mas para abastecer a cisterna-calçadão é construída uma calçada que facilita o escoamento da água da chuva para dentro do reservatório. Na cisterna-enxurrada, não há necessidade de construir a calçada, pois as cisternas são construídas em um local onde a água escorre durante a chuva, ou seja, onde a enxurrada passa, por isso ela tem esse nome.
IHU On-Line – Em seis anos foram instaladas 22.051 cisternas-calçadão e cisternas-enxurrada. Qual o impacto dessas instalações para as pessoas que convivem no semiárido, principalmente neste período de seca?
Cristina Nascimento – É importante perceber o grau de impacto que essas tecnologias têm na vida das famílias. Vários agricultores já estavam produzindo alimentos em seus quintais e, mesmo com a seca, as famílias continuaram produzindo, mas diminuíram a escala de produção sem criar excedente para vender na feira, priorizando o consumo familiar.
Hoje, várias famílias fazem a gestão da água, produzem hortaliças em seus quintais para o consumo e para comercializar, e algumas participaram de feiras agroecológicas durante todo o período de seca. Então, percebemos que as famílias, quando se apropriam da gestão da água, conseguem transformar o que, para nós, parece muito pouco em uma grande possibilidade de produção. O principal impacto na vida das famílias é que elas continuaram produzindo alimento para o consumo familiar e para a comercialização, ou seja, nesse período de seca, essas famílias tiveram a oportunidade de ter autonomia e de passar por esse momento com mais tranquilidade do que em períodos anteriores.
Por mais que em algumas comunidades a cisterna-calçadão não tenha sido completamente reabastecida, o fato de as famílias terem essa infraestrutura possibilitou que elas pudessem buscar água no barreiro ou no carro-pipa. Mas o fato é que elas tinham onde estocar a água, e essa possibilidade é muito importante para que as famílias consigam enfrentar esse período de seca.
IHU On-Line – Qual a situação do abastecimento de água no Ceará? O estado tem alguma política que garanta a segurança hídrica?
Cristina Nascimento – No Ceará conseguimos, através do debate da ASA com o governo do Estado, construir a ideia da necessidade de universalizar as cisternas. Inclusive, o Ceará caminha nesta perspectiva de universalizar as cisternas a todas as famílias da zona rural que estão dentro do perfil para receber esse benefício.
Neste último período de estiagem, houve uma pressão muito grande dos movimentos sociais e das organizações para que o governo garantisse, através da Defesa Civil, o abastecimento e o reabastecimento das cisternas. Infelizmente, essa política da distribuição de água é menos urgente para o governo do que gostaríamos. Defendemos, portanto, que as cisternas sejam reabastecidas com água potável, e que o reabastecimento aconteça de forma contínua. Em períodos de seca, aquelas famílias que guardaram a água para o consumo humano, ainda tinham água para beber, mas precisavam de água para outros usos: tomar banho, lavar a roupa, etc.Então, há uma política instituída emergencialmente, mas infelizmente não tem conseguido dar cobertura à demanda das famílias.
No governo do Ceará, há um debate sobre a ampliação e interligação dos açudes, porém, reiteramos que as infraestruturas menores também são importantes. Temos, no estado do Ceará, por exemplo, o açude Castanhão, o maior reservatório do Nordeste, o qual abastece toda a siderúrgica do porto e diversas indústrias, mas as famílias que moram em torno do açude não têm acesso à água. Então, muitas vezes a infraestrutura é construída, mas as famílias não têm acesso, porque a água é destinada a servir aos grandes empreendimentos, ao hidronegócio, às áreas de irrigação.
IHU On-Line – Será possível universalizar as cisternas conforme a meta prevista para 2014?
Cristina Nascimento – Não sei se alcançaremos esta meta, mas, com certeza, teremos um avanço extraordinário em 2014, especialmente agora, com a aprovação da Medida Provisória 619, que desburocratizou o processo de contratação dos envolvidos na construção das cisternas; isso nos ajuda a dinamizar o processo de construção das cisternas, da aquisição de material, etc. Então, essas mudanças darão maior velocidade ao processo construtivo.
IHU On-Line – Como você avalia o projeto de transposição do Rio São Francisco, que propõe abastecer cidades do Ceará?
Cristina Nascimento – A ASA tem uma posição muito clara em relação à transposição. Desde o primeiro debate sobre a transposição, nós colocamos nosso posicionamento contrário, porque o Rio São Francisco precisa ser socorrido. Quem anda pelo leito do rio vê que quase não há mata ciliar, que há uma quantidade cada vez menor de água. Então, num primeiro momento, trata-se de uma questão ambiental. Em segundo lugar, trata-se de uma dimensão política, porque a transposição passa a ser justificada pela seca; entretanto, essa água vai servir aos grandes empreendimentos e indústrias, e jamais chegará para as famílias que vivem no interior e sofrem com a escassez de água.
O investimento do governo na transposição poderia ter sido transformado em obras de infraestrutura hídrica para sanar o problema do acesso à água. A transposição é mais uma grande obra que demanda mais e mais recursos. Se tivessem investido parte desse recurso em outras possiblidades de abastecimento, talvez o semiárido não tivesse passado mais uma vez o que passou nesse período de seca. Em Fortaleza, para você ter uma ideia, não teve problema de abastecimento de água no período de seca, e a transposição do Rio São Francisco não foi finalizada. Então, quer dizer, o Ceará tem água, mas a distribuição e gestão dela faz com que algumas pessoas passem sede.
IHU On-Line – Como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae têm sido desenvolvidos no semiárido?
Cristina Nascimento – São duas políticas públicas que colocaram a agricultura familiar como centralidade na produção de alimentos. Nesse sentido, a ASA tem estimulado os agricultores a se organizarem e acessarem o PAA e comercializarem para o Pnae, porque estas são políticas importantíssimas de valorizar a produção da agricultura familiar. Antes desses programas, os agricultores enfrentavam dificuldades em comercializar seus produtos, porque não tinham preço. Com a introdução desses programas, há uma valorização a partir de uma política que estabelece o preço dos alimentos e valoriza a produção da agricultura familiar.
IHU On-Line – Quais são hoje as principais políticas públicas para as Mulheres Rurais desenvolvidas no semiárido?
Cristina Nascimento – Desde 2005 foi implementada a política de documentação da mulher trabalhadora rural, e essa é uma política fantástica, pois muitas vezes as mulheres não tinham acesso às políticas públicas porque não tinham documentação. Além disso, as pesquisas mostram que as cisternas trouxeram uma melhora na qualidade de vida das mulheres, porque geralmente eram elas que mais sofriam com a falta de água, ao terem de buscá-la com latas na cabeça.
É importante destacar que a política de agroecologia prevê que 50% dos beneficiários da chamada sejam mulheres. Medidas como essa ampliam a participação das mulheres na dinâmica das políticas públicas. As organizações e os movimentos sociais têm buscado estimulá-las para que sejam sujeitos da sua história, que tenham visibilidade e possam expressar seu trabalho.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Cristina Nascimento – Na próxima semana, entre os dias 28 e 31 de outubro, a ASA realizará o terceiro encontro nacional de agricultores e agricultoras experimentadores, ou seja, de famílias que atuam em programas desenvolvidos pela ASA, que têm seus quintais produtivos, que trabalham no manejo dos pequenos animais. Será um grande encontro de intercâmbios em Campina Grande. O evento terá a participação de 200 agricultores, que demonstrarão que o desenvolvimento do semiárido é possível, porque quando há democratização do acesso à água e da infraestrutura, os agricultores transformam seus lugares. O encontro terá como tema “Guardiões da biodiversidade cultivando vidas e resistência no Semiárido”.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line) BLOG SOS RIOS DO BRASIL
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