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15 de outubro de 2014

A CRISE DA ÁGUA É MAIOR DO QUE A CHUVA



GESTÃO DA ÁGUA
A crise é maior do que a chuva
Ainda que pouco eficiente a esta altura, a tentativa do governo de São Paulo de circunscrever as causas da falta de água a fatores meteorológicos busca evitar o questionamento das políticas produtoras dessa crise, que vêm sendo concretizadas há décadas
por Delmar Matter, Renato Tagnin e José Prata

A atual situação extremamente crítica de escassez de água nas regiões metropolitanas de São Paulo e de Campinas foi prevista há pelo menos uma década por técnicos da área e nos planos elaborados para os recursos hídricos regionais, visto que o consumo superaria a água disponível. 

Na prática, suas consequências na redução do suprimento já eram sentidas há muito tempo, em vários municípios e áreas periféricas dessas regiões, condição que agora se estende para outros locais, com a persistência da estiagem. Era evidente a impossibilidade de manter o suprimento para quase a metade da metrópole de São Paulo, com a água retirada da região de Campinas, via transposição pelo Sistema Cantareira, considerando o aumento da demanda populacional, industrial e agrícola de todas essas regiões.

Agora, o agravamento da estiagem torna inevitável a adoção de medidas mais drásticas, que devem alcançar os segmentos de maior renda, tradicionalmente isentos de sacrifícios e mais influentes na mídia. Ainda que pouco eficiente a esta altura, a tentativa do governo de São Paulo de circunscrever as causas a fatores meteorológicos busca evitar o questionamento das políticas produtoras dessa crise, que vêm sendo concretizadas há décadas.


Importantes estudos, em todo o mundo, apontam como maiores ameaças à água a expansão urbana, industrial e agrícola, as intervenções nos cursos de água (canalizações, transposição de bacias, barragens e desvios), a perda de áreas úmidas e o desmatamento, além do aumento do consumo de água e da poluição hídrica. Trazendo esses fatores para as regiões analisadas, é inevitável reconhecer que não apenas eles se aplicam completamente, como são considerados sinônimo de desenvolvimento.

A Macrometrópole Paulista1 é frequentemente saudada nos documentos oficiais e na imprensa como um fenômeno urbano cujo nível de desenvolvimento se equipara ao dos países europeus. Isso seria bom, não fosse este um país posicionado na periferia do capitalismo, cujos desequilíbrios e passivos sociais e ambientais aqui produzidos não podem ser transferidos para colônias distantes. Contudo, verifica-se uma contínua transferência da pobreza, dos resíduos e dos esgotos para regiões e municípios periféricos, concentrando renda fundiária e imobiliária nas áreas centrais. No entanto, a água consumida nesses centros provém dos mesmos locais desvalorizados e degradados por receberem os rejeitos metropolitanos. Assim, muitos recursos são mobilizados na tentativa de adequar essa água ao consumo, além daqueles empregados na sucessiva busca de novas fontes, invariavelmente distantes e já utilizadas para importantes finalidades econômicas, sociais e ambientais.

Esses elementos ameaçadores da água, como a expansão industrial, agrícola e urbana, superam os níveis de crescimento populacional e suas demandas essenciais e dependem de expressivos investimentos públicos e privados. Os interesses em seus resultados vão além das ambições políticas de determinados grupos e se originam nos maiores beneficiários das grandes obras, da especulação imobiliária, financeira e da produção de veículos, entre outros protagonistas da formação desse espaço cada vez mais amplo, vulnerável e degradado.

Os desafios a serem enfrentados no resgate da água limpa, nesse contexto, podem ser comentados em dois grupos de problemas interligados. O primeiro é o intenso desperdício de água nesta sociedade de consumo, além das alterações do clima provocadas pela formação das chamadas “ilhas de calor” nas áreas intensamente urbanizadas, agora potencializadas com os efeitos das mudanças climáticas globais nos recursos hídricos. 


O segundo aglutina as políticas de recursos hídricos e de gestão das águas aplicadas na região afetada pela crise e no restante do estado de São Paulo, compreendendo: a degradação dos mananciais que deveriam garantir a produção e qualidade de água; a mercantilização da água e a privatização da empresa de saneamento; a inexistência de ações para redução de demanda; e, por último, o abandono da gestão integrada e participativa dessas águas.

Consumo e desperdício nas atividades produtivas
O modelo econômico vigente apoia-se na produção, consumo e descarte crescentes de mercadorias e recursos, como água, enquanto forma de viabilizar permanentemente o acúmulo de capital. Assim, ele inclui mercadorias supérfluas e descartáveis, em detrimento do que é básico e essencial para a população, numa dinâmica que é estimulada pela oferta de crédito e intensa publicidade.

A imposição de crescentes “necessidades” de consumo para aumentar as vendas acelera a exaustão das reservas hídricas, principalmente quando sua disponibilidade está no limite,como é o caso das regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas. 

A suposição de que esse modelo deve continuar se expandindo apoia as projeções realizadas para a Macrometrópole Paulista, que concentra as regiões de quase 80% da população do estado, estimando-se que o consumo de água proveniente apenas de captações diretas em rios e mananciais, por parte do setor industrial, deverá crescer ainda 24% até 2035.2

Mudanças climáticas globais e locais

O aquecimento global e, principalmente, a formação de “ilhas de calor” nas áreas intensamente urbanizadas vêm sendo apontados como responsáveis por desestabilizações climáticas registradas nos últimos anos. Dados apresentados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) concluem que essas transformações tendem a provocar um agravamento dos extremos, desencadeando precipitações e estiagens acentuadas.

Essa nova realidade exige o controle da expansão urbana, a introdução de políticas adaptativas e o fortalecimento da resiliência dos sistemas naturais, por meio da ampliação de programas que os protejam, garantindo a prestação de serviços ambientais.

Mananciais, qualidade e quantidade das águas

A Lei de Proteção de Mananciais criada na década de 1970 não foi efetivamente aplicada pelo estado ou pelos municípios, exceto em alguns curtos períodos, quando operaram programas integrados de fiscalização. Na Bacia do Alto Tietê, os mananciais legalmente protegidos se situam em áreas elevadas do extremo norte, sul e leste da Grande São Paulo, à época caracterizadas pela abundância de chuvas. Nesses locais, as ocupações clandestinas foram organizadas por loteadores para atender à população de baixa renda que buscava alternativas de moradia, fora dos espaços valorizados pelo mercado. Iniciativas de rever a legislação partiram do governo na década de 1980, para torná-la mais “eficiente e adequada”, e, em 1997, ela foi efetivamente alterada e passou a valer para todo o estado de São Paulo (Lei n. 9.866/1997).

A despeito de avanços como a possibilidade de participação dos municípios e da sociedade civil em sua gestão, essa lei foi menos restritiva aos usos urbanos, não alterou a precariedade na fiscalização nem impediu a instalação de projetos governamentais de grande porte, como o Rodoanel, que atraem mais ocupantes e atividades econômicas incompatíveis com os mananciais. Como resultado, essas áreas protegidas continuam a se deteriorar com o desmatamento, os esgotos domésticos e industriais, o lixo e os processos erosivos, que resultam do avanço da urbanização.

Mesmo investimentos elevados para recuperar essas áreas, como os efetuados para as bacias do Guarapiranga e Billings, têm mostrado resultados inexpressivos por se concentrarem no saneamento de algumas favelas, sem ampliar áreas protegidas ou prevenir a expansão urbana. Em vez de serem considerados áreas livres para a realização de negócios imobiliários, esses territórios necessitam do reconhecimento prático de sua importância estratégica na depuração e reservação das águas para suprir a população, com regularidade e segurança.

Mercantilização da água e privatizações

O saneamento da região submetida à escassez é promovido principalmente pela Sabesp, uma empresa de economia mista controlada pelo governo de São Paulo, que tem 51% das ações. A partir de 2002, suas demais ações passaram a ser negociadas na Bovespa e, em seguida, na Bolsa de Nova York. Em 2008, a Sabesp passou a se dedicar também a outros serviços, como os de águas pluviais, limpeza urbana, resíduos sólidos, além daqueles ligados à energia, em outras regiões do país e no exterior. 

A descaracterização de sua função pública prosseguiu com a criação3 da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), quando pôde assumir participação e controle de capital com outras empresas, formando subsidiárias, nacionais ou internacionais.


A lucratividade da Sabesp é obtida com o fornecimento de água e a prestação de serviços de esgotos, o que a impele a vender quantidades cada vez maiores de água, cobrando tarifas vantajosas, mesmo dos serviços de esgotamento, que não são prestados para boa parte dos usuários. Além disso, ela não paga os encargos pelo uso de patrimônios públicos, como os reservatórios Guarapiranga e parte das represas do Alto Tietê. 

Esse conjunto de procedimentos expressa uma política privatizante, que se opõe à consideração da água como um bem público e recurso vital para a população. Essa é a bandeira de luta internacional dos movimentos sociais que querem assegurar a universalização do acesso à água.

Políticas de gestão da demanda

A gestão da demanda tem como objetivo ajustar o consumo da água à sua disponibilidade, e nas condições de escassez, como as atuais, sua importância e prioridade devem crescer, ao contrário do que ocorreu. É importante lembrar que as iniciativas para reduzir o consumo de água fazem parte de um programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) destinado a contribuir para a saúde pública, avançando no tratamento de esgotos, na manutenção da integridade de ecossistemas e no uso sustentável da água.

Entre as medidas recomendáveis para ajustar a demanda destacam-se as de redução de perdas na rede; a diminuição do consumo doméstico nos condomínios, incentivada pela instalação de hidrômetros individualizados e pela substituição dos equipamentos sanitários que consomem muita água; e o reúso da água em domicílios, indústrias, estabelecimentos comerciais etc.

Alternativas de suprimento

Embora as águas subterrâneas não constituam a principal fonte de abastecimento, elas podem complementar as captações em águas superficiais. Sua qualidade, em geral, é satisfatória e vem sendo explorada como fonte principal em grande número de condomínios, indústrias e outros empreendimentos. 

Apesar de sua exploração necessitar de uma autorização (outorga), o grau de clandestinidade é elevado, o que ameaça essas águas de duas formas: com a contaminação, pelo reduzido cuidado na manutenção dos poços, e com o rebaixamento do nível dos poços, pela exploração acima da capacidade de recarga, em especial considerando a impermeabilização do solo nas áreas urbanas, onde essa água é mais demandada.


No atual quadro de escassez é necessário que essas águas sejam destinadas, prioritariamente, para o abastecimento público, revertendo a situação de descontrole em sua exploração privada.

Gestão de recursos hídricos
O atual sistema de gestão, que resulta de intensa mobilização de setores técnicos e organizações sociais, constitui um modelo democrático, descentralizado e participativo que permite equacionar conflitos pelo uso da água e todos os projetos que interferem nela, permitindo tomar decisões embasadas em planos de bacia. No entanto, na Bacia do Alto Tietê, onde os problemas de água são os mais graves do estado, o respectivo comitê foi paulatinamente esvaziado, reduzindo as possibilidades de controle social das políticas do setor e da indicação das ações e investimentos que garantam o uso prioritário do abastecimento diante dos demais. 

Paradoxalmente, os acionistas da empresa de saneamento, situados em países distantes, detêm um poder de decisão sobre o destino das águas onde ela opera maior que o dos participantes do comitê e o dos consumidores submetidos a racionamento por falta de investimentos. Isso ocorre porque os recursos desses investimentos, gerados no pagamento das tarifas (indevidas no caso dos esgotos), são utilizados para pagar dividendos a esses acionistas.


Como se vê, a “democracia” do capital vem superando todas as demais, com a ajuda de governos voltados a clientes preferenciais. Isso aponta a necessidade de evitar a perda do espaço minimamente democrático de gestão de recursos hídricos, buscando ampliá-lo para um verdadeiro fórum das águas, capaz de promover soluções criativas e agregar parcelas maiores da sociedade nas decisões.

Evitando-se pressionar demasiadamente nossos governantes, ou as modernas e agora globais empresas de saneamento, há duas ações prioritárias para recuperar a água que nos falta. Elas dependem apenas da aplicação de dois artigos do Código Sanitário Estadual de 1894, o 173 e o 313, que estabelecem, respectivamente, que, “na falta de canalização de esgotos, os resíduos poderão ser lançados nos rios, mas depois de purificados” e que “as matas existentes nas cabeceiras [dos mananciais] deverão ser conservadas do melhor modo possível”. 


Delmar Matter, Renato Tagnin e José Prata
Delmar Mattes, geólogo, consultor e professor aposentado da Escola de Engenharia de Lins, foi secretário de Vias Públicas e de Obras da Prefeitura de São Paulo na administração Luiza Erundina; Renato Tagnin, arquiteto e urbanista, mestre em engenharia civil e urbana pela Escola Politécnica da USP, é consultor e pesquisador; eJosé Prata é engenheiro e ativista ambiental. Os três são membros do Coletivo Curupira.


Ilustração: Daniel Kondo


1  Essa macrometrópole abrange as regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas, Baixada Santista, Vale do Paraíba e Litoral Norte, além das aglomerações urbanas de Jundiaí, Atibaia e Sorocaba.
2  Plano Diretor de Aproveitamento dos Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista.
3  Por meio da Lei Complementar n. 1.025/2007.


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