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26 de agosto de 2013

NAVEGABILIDADE NOS RIOS DO BRASIL: TRANSPORTE DE PESSOAS É UTILIZADO POR 12 MILHÕES


PASSAGEIROS À DERIVA NOS RIOS DO BRASIL


Em que pese uma significativa parcela da população ter saído da miséria, nos últimos anos, segue ainda apropriado o termo cunhado há décadas para o Brasil: “BELÍNDIA”. Um país dividido em duas realidades diametralmente opostas. 

De um lado, seletos setores dominando um processo historicamente concentrador de riqueza, sejam públicos ou privados, com nível de desenvolvimento, renda e consumo similares à Bélgica. De outro, a imensa maioria da sociedade, com uma carga de impostos semelhante ao referido país, mas com serviços e padrão de vida equivalente aos da Índia.

Esse “estado de coisas” de nossa nação tupiniquim tem origem na alienação e dependência cultural, política, social, econômica e ambiental da própria sociedade. Nessa esteira, os meios de comunicação, com raras exceções, operam subservientes para a manutenção do “status quo”vigente. Entretanto, eventualmente, somos surpreendidos com matérias interessantes, como a do jornal O GLOBO, reproduzida integralmente abaixo.

Assim, abstendo-me das questões políticas que impulsionaram a referida reportagem, vale a saudação: “Viva à mídia, quando faz o relevante trabalho de expor as mazelas brasileiras na busca por soluções”.

Transporte fluvial, utilizado por 12 milhões de pessoas, é o único sem regulação no Brasil, por Liane Thedim.

Fonte: Agência O GLOBO. Crédito Marcia Foleto




















MANAUS E BELÉM — ‘Quando chego, é só amor, né?’. Assim Roberto Martins resume sua vida, a maior parte passada sobre o Rio Amazonas. O auxiliar de convés de 31 anos trabalha há quatro anos no barco Amazon Star, que faz o trajeto regular Manaus-Belém: 1.584 quilômetros em inacreditáveis cinco dias. Na volta, é ainda pior — seis dias, porque a correnteza joga contra, mais dois dias parado no porto. Ou seja, a cada 12 dias, Roberto passa três noites em casa, na capital paraense. 

No barco, já viu de tudo. Afinal, pelo menos 30 mil pessoas viajam por ano na embarcação, que tem capacidade para 750 passageiros. Mas, até hoje, o que mais o impressiona é a romaria de trabalhadores que vão tentar a vida na capital amazonense:
— A maioria vem do Maranhão. Vai “pra” Manaus, fica na rua, cai nas drogas e volta com a roupa do corpo. Consegue que alguém pague a passagem. Só de olhar a gente já sabe.

Na Amazônia, os rios são as estradas. Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), eles serviram de caminho a 12 milhões de pessoas em 2011, em embarcações de 132 empresas, fora as milhares que trafegam à margem da fiscalização. No entanto, apesar do grande alcance, praticamente não há dados disponíveis sobre o modal, o que, para especialistas, é um retrato do descaso com que é visto pelo governo. 

Não há concessão de linhas, como acontece em ônibus, trem e avião. O governo apenas autoriza as empresas a operarem determinado trajeto e são elas próprias que decidem os locais de parada e com que regularidade vão operar. Não há, portanto, metas de atendimento ou controle de tarifas.
— É o único transporte público sem regulação no Brasil — diz Floriano Pires, professor de Engenharia Oceânica da Coppe/UFRJ.

A viagem do GLOBO no Amazon Star começou na quarta-feira, dia 16 de maio, com atraso: prevista para as 16h, a saída de Manaus aconteceu às 17h, com 145 passageiros a bordo, dos quais, 50 fariam o trajeto ponta a ponta. No total, ao longo das paradas, 500 pessoas passaram pelo barco. Entre os passageiros, muitos iam visitar parentes ou voltavam para casa e optaram pelo barco por ser mais barato. 

A passagem no salão das redes, espécie de alojamento com cerca de 300 metros quadrados e espaço para 300 pessoas, sai por R$ 150 na baixa temporada, sem limite de bagagem. De avião, a viagem leva duas horas e custa de R$ 300 a R$ 1.200, dependendo da data, com máximo de bagagem de 20 quilos. Na alta temporada, em junho, a passagem nas redes custa o dobro: R$ 326. Mas havia também os que escolheram a longa viagem por turismo, para ver de perto o maior rio do mundo, ou simplesmente por medo de avião.
— Vim refrescar a cabeça, avião é “pra” quem tem pressa — diz o operador de guindaste Luciano Barros, de 32 anos, que ia com a mulher e a sogra para Belém, onde pegaria um ônibus para o Maranhão. — Na primeira vez que andei de avião, fiquei com as mãos e os pés tremendo.

Banheiros sujos e calor irritam usuário.

Histórias não faltam. Como a de dona Ana Santana da Silva, de 69 anos, cearense que pagou R$ 100 para voltar de rede de Parintins, onde visitou uma filha — “Tive 17 filhos, mas só criei dez, os outros morreram ainda bebês” —, para Belém. De lá, pegaria um ônibus para o Maranhão. 

O alagoano Roberto, de 34 anos, que não quis ser fotografado nem revelar seu sobrenome, voltava de um garimpo na selva venezuelana e levava, amarrado à cintura, uma bolsa com o ouro e o dinheiro que conseguiu guardar. Por isso, não quis ir de avião. Ele conta que dormiu seis meses em uma cabana de madeira. O baque veio quando a febre começou:
— Fui internado no hospital da Cruz Vermelha e o exame deu que eu estava com malária e dengue hemorrágica ao mesmo tempo. Aí falei pra mim mesmo: “Vou embora, vou morrer no Brasil” — recorda ele, que ainda tomava os remédios durante a viagem.

Já a paraense Marilu Cunha, 49 anos, cantora de bolero com dez CDs gravados, pagou caro pelo seu pânico de avião: R$ 1 mil para viajar na única suíte do barco que tem cama de casal e cerca de 25 metros quadrados, e mais R$ 1 mil para levar seu carro. Sua maior reclamação era da comida:
— O almoço é precário.

Banheiros imundos, ar-condicionado que não funcionava regularmente — o calor nas redes muitas vezes era infernal —, barulho durante toda a madrugada. Nas conversas, as queixas são recorrentes. O medo de furtos de bagagem (as malas ficam amontoadas embaixo da rede do dono) é geral. Mas o clima pesou mesmo na terceira parada, em Óbidos (PA), onde uma operação da Força Nacional e da Polícia Federal revirou o barco em busca de drogas, armas, tráfico de pessoas, de animais e biopirataria. Encontraram um carro roubado no andar de carga, levado por um rapaz que dizia ter 16 anos mas não tinha documentos, além de seis caixas de mercadorias sem nota fiscal. Foi provavelmente o único momento de silêncio dos cinco dias.

Entre os passageiros, o que mais se comentava era o momento em que o barco sai do Amazonas e entra no chamado estreito de Breves, conjunto de pequenos rios e ilhas que dá acesso à cidade de mesmo nome, no Pará. 

Quando avistam o barco, dezenas de ribeirinhos remam em suas canoas a toda velocidade para se aproximar e pedir roupas e dinheiro. Muitos já vão preparados e, num ritmo frenético, jogam as doações em sacolas. Depois, vêm os que vendem frutas. A cena é impressionante: com o barco em movimento, conseguem amarrar a canoa e subir a bordo.

Cinco dias e quatro noites depois, o cansaço é visível na chegada.
— É muito demorado... Acho que consigo passagem baratinha “pra” voltar de avião, é só ficar olhando no computador — sonhava Francisco Brito da Silva, 55 anos, que levava 50 quilos de bagagem e de Belém iria de ônibus até Juazeiro do Norte (CE) ver a família.


Fonte:
·        Jornal O GLOBO
·         ANTAQ


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