[EcoDebate]
O paciente enfartado, quando entra na UTI hospitalar, passa, em primeiro lugar, por uma bateria de exames e só depois, com base nos resultados é que os especialistas traçam o programa de tratamento. As pequenas bacias hidrográficas degradadas, internadas na UTI ambiental, também devem passar por etapas semelhantes para recuperarem suas saúdes hidrológicas e poderem voltar a produzir volumes de água que já estiveram produzindo no passado. Se os pacientes enfartados recebem tratamentos específicos, as pequenas bacias também devem ter planos específicos. Esta é uma conclusão elementar, mas infelizmente necessária, pois há uma enorme tendência, no Brasil, de generalizar soluções e acreditar que seja suficiente a aplicação de legislações que consideram iguais os diversificados ecossistemas que ocorrem no país.
Ao falar montar um plano ou desenvolver um projeto de conservação, o leitor vai imaginar um documento cheio de mapas, tabelas, gráficos, textos enormes com justificativas e descrição de metas e outras parafernálias semelhantes. Mas nem sempre há necessidade de tudo isso, pois o mais importante é a boa observação do fato (da pequena bacia, no caso) e trabalhar as adequações necessárias; mas, antes de tudo, possíveis dentro da realidade social e econômica da comunidade envolvida. Uma ação importante é ter um roteiro de orientação, que pode ser o seguinte: objetivo – inventário – análises das informações do inventário – geração de alternativas – seleção das alternativas e montagem do plano de manejo – execução. Vamos discutir rapidamente cada uma destas etapas.
Objetivo: Como estamos discutindo produção de água, vamos admitir que o objetivo principal seja aumentar a vaza das nascentes e do curso d’água formado e mantido pela pequena bacia ( podem existir outros objetivos secundários para casos específicos). Será sempre muito bom se pudermos colocar algumas metas acopladas ao objetivo; por exemplo, aumentar a vazão em 40%. Ou quem sabe dobrá-la em um período de cinco anos. Isso vai depender dos primeiros contatos com a bacia e de ouvir algumas histórias a respeito dela, contadas pelos que moram nela ou a exploram.
Inventário: Precisamos de alguns dados relativos à pequena bacia, começando pela busca de informações meteorológicas. Quanto chove anualmente? Como é a distribuição das chuvas? Há grande concentração de chuvas intensas, como de 50 mm/h, por exemplo? Estas informações podem ser buscadas em sites de instituições como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmetro) e Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC). Também podem ser consultadas empresas que fazem previsões de tempo e que estão presentes nos noticiários das diversas mídias. Outro dado importante é a vazão de estiagem (vazão mínima) atual e uma busca de informação sobre os valores da vazão em épocas passadas. Características ambientais da bacia: solos, vegetação, declividades de encostas e usos da terra. Características dos moradores: percepção da importância da água, capacidade de lidar com tecnologias de conservação, disposição para mudanças etc. Para distribuição e localização das características, será fundamental a aquisição de um mapa da área. Mas, mesmo para isso, é possível trabalhar com cópias diretas do Google Earth, ou com fotografias aéreas obtidas em instituições oficiais.
Análise das informações do inventário: Apenas alguns exemplos, a seguir, para ilustração do que deve ser feito nesta fase.
1) Se o solo for muito argiloso, com baixo teor de matéria orgânica, vai ter baixa porosidade, dificultando a infiltração. Vale a pena, em muitos casos, completar o inventário, medindo a velocidade de infiltração (uma pesquisa na internet indicará métodos de medição);
2) Se houver a ocorrência de chuvas muito intensas (acima de 50 mm/h, por exemplo), já estaremos intimados a construir sistemas de retenção de enxurradas com boas capacidades de armazenamento temporário de água (terraços, caixas, barraginhas). Se a velocidade de infiltração tiver sido medida, teremos a possibilidade de confrontá-la com a intensidade da chuva, ajudando no dimensionamento futuro das estruturas de contenção de enxurradas;
3) Se há encostas com pastagens degradadas, valerá discutir com o proprietário rural, ou mais de um, a possibilidade de melhorar o estado vegetativo e fazer manejo rotacional. Até mesmo adotar sistema silvipastoril ou reflorestamento de áreas de maior declividade;
4) Pelo levantamento de percepção dos moradores, eles estão preparados para aceitar novas tecnologias? Haverá necessidade de educação ambiental e de capacitação para lidar com os novos procedimentos? Há, disponível, alguma instituição ligada à extensão rural ou alguma cooperativa de produtores que poderão ajudar na implantação ou mesmo no convencimento de um ou outro mais cético?
Outras análises deverão ser feitas, de acordo com as necessidades específicas da pequena bacia em foco.
Geração de alternativas: Também exemplos.
1) Conhecendo intensidade de chuvas e velocidades de infiltração numa encosta, poderemos sugerir, antecipadamente, duas alternativas, sendo a primeira composta de reflorestamento de uma área mais inclinada e a adoção de sistema silvipastoril para o restante. Como segunda alternativa, poderemos propor a substituição da forrageira que ora ocupa a encosta e construir terraços de base estreita. Em qualquer das alternativas, há de se propor uma divisão da pastagem para permitir o uso rotacionado;
2) Para melhorar a percepção ambiental poderemos propor conversas diretas com moradores ou uma parceria com o sistema educativo municipal. A capacitação, se necessária, poderá ser feita através de uma visita a alguma bacia já trabalhada ou em dia de campo na própria bacia, onde as tecnologias serão apresentadas e discutidas;
Para todas as alternativas, será importante um levantamento de custos para auxiliar nas escolhas da próxima etapa.
Seleção das alternativas e montagem do plano de manejo: Ainda exemplos.
1)Discutidas as alternativas para as encostas com pastagem degradada, com dois proprietários, um deles pode optar pela troca da forrageira e a construção de terraços: o outro pelo sistema silvipastoril, mas desde que adotado em toda a encosta, mesmo na área mais inclinada. Se ele for irredutível em não aceitar o reflorestamento na parte mais inclinada, melhor concordar, para não perder a colaboração. Talvez com o tempo, e vendo o aumento da capacidade de suporte da área melhorada, ele acabe mudando de opinião;
2) Quanto à educação ambiental, as alternativas, levadas à discussão com moradores e com o sistema de educação municipal, pode acabar com o município assumindo o encargo, desde que o plano formule o programa a ser desenvolvido e seja dado treinamento para os agentes encarregados da sua aplicação. Já com respeito à capacitação, pode ficar decidido que o plano incluirá o dia de campo;
3) Escolhidas as alternativas, elas serão tecnicamente planejadas, com descrições detalhadas e os custos respectivos, gerando o plano de manejo.
Execução: Limita-se à implantação do plano de manejo.
O roteiro apresentado aplica-se a pequenas bacias (mas que somadas formam as grandes) e conforme já discutimos em um dos artigos que trataram do “diagnóstico da água”, dentro da série UTI ambiental, o conceito hidrológico de pequena bacia hidrográfica refere-se àquelas de 1a, 2a ou 3a ordens. Em regiões montanhosas e bem drenadas, as bacias de 1a ordem podem ter áreas de 50 a 100 hectares e as de 3a podem chegar a 1000 hectares. Depreende-se, portanto, que podemos lidar com comunidades formadas por poucos ou muitos habitantes. Bacias com áreas de 1000 hectares, dependendo da situação fundiária da região, podem envolver 20 ou mais famílias e, nesses casos, o roteiro discutido deve ser desenvolvido passo por passo. Se a bacia for de 1a ordem e envolver apenas um ou dois núcleos familiares, depois do inventário e da análise dos dados dele provenientes, as demais etapas do roteiro podem ser conduzidas em conjunto, em contatos diretos com os moradores. Os planos podem ser resumidos em descrições rápidas das condições, com recomendações e receitas para execução, incluindo croquis, fotografias com câmeras comuns etc.
Em quaisquer das possibilidades de aplicação do roteiro, o hidrologista responsável, ou coordenador, vai precisar da ajuda de profissionais das áreas agronômicas e florestais, de geólogos, meteorologistas, agrimensores e outros, mesmo que seja para rápidas consultorias ou opiniões. Tudo dependendo da complexidade da pequena bacia. Não custa lembrar que manejo de bacias hidrográficas é uma atividade multidisciplinar.
Sei que muitos vão achar que estou simplista e tentando vender o elementar. Tudo bem, o respeito às opiniões contrárias é sempre devido, mas tenho a firme convicção de que plano bom é aquele que pode resolver e esteja adequado às realidades sociais e econômicas do ambiente a que se destina. E mais, que possa ser entendido e executado pelos produtores rurais, com apoio financeiro e assessoria de técnicos de campo. Gostaria muito de ver os Comitês de Bacias discutindo isso.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor de dois livros sobre o assunto: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; colaborador e articulista do EcoDebate .( valente.osvaldo@gmail.com)
EcoDebate, 16/04/2014
http://www.ecodebate.com.br/2014/04/16/uti-ambiental-revitalizacao-de-bacias-hidrograficas-ii-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/
Veja aqui a primeira parte : http://sosriosdobrasil.blogspot.com.br/2014/04/uti-ambiental-revitalizacao-de-bacias.html
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