As nuvens que pairam sobre a Floresta Amazônica possuem
características similares às das nuvens existentes em regiões de alto
mar. Como há muita umidade na atmosfera e baixíssima concentração de
material particulado – que oferece superfície para condensação do vapor
d’água – as gotas aumentam de tamanho rapidamente e logo adquirem massa
suficiente para precipitar.
Essa particularidade da floresta tropical foi descrita pela primeira vez em 2004, em um artigo publicado na revista
Science por
cientistas que participavam do Large-Scale Biosphere-Atmosphere
Experiment in Amazonia (LBA) – um programa de cooperação internacional
liderado pelo Brasil. A descoberta rendeu à Amazônia a alcunha de
“oceano verde” (
green ocean).
O mesmo estudo sugeriu, porém, que a eficiência amazônica na produção
de chuva estaria ameaçada pela crescente poluição resultante da
urbanização e da queima de biomassa. Isso porque o aumento de material
particulado (partículas de aerossóis) na atmosfera criaria uma
quantidade maior de núcleos de condensação da água e, consequentemente,
reduziria o tamanho das gotas e retardaria todo o processo de
precipitação.
“Se a poluição estiver, de fato, alterando as características das
nuvens na Amazônia, a consequência será uma mudança significativa no
regime de chuvas. E alterar o equilíbrio hidrológico de uma região
gigantesca, responsável por controlar o transporte de umidade para o sul
do país, pode trazer impactos importantes nas regiões Sudeste e
Centro-Oeste”, afirmou Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da
Universidade de São Paulo (USP) e coautor do artigo publicado na
Science.
Para testar a hipótese do efeito da poluição sobre as nuvens e
avançar no conhecimento sobre os processos de formação de chuva e a
dinâmica da interação entre a biosfera amazônica e a atmosfera, teve
início em janeiro deste ano a campanha científica
Green Ocean Amazon (GOAmazon),
que reúne pesquisadores de diversas universidades e institutos
brasileiros e norte-americanos e conta com financiamento do Departamento
de Energia dos Estados Unidos (DoE, na sigla em inglês), da FAPESP e da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), entre
outros parceiros.
“O uso dos recursos naturais pelos seres humanos se acelerou nos
últimos 30 ou 40 anos. A pergunta que estamos tentando responder com
este experimento é: até que ponto podemos poluir, arrancar árvores e
mudar o clima? Até quando a Terra vai suportar?”, disse Scot Martin –
professor da Harvard University, nos Estados Unidos, e idealizador do
GOAmazon ao lado de Artaxo – durante o lançamento oficial do programa no
Amazonas, no dia 18 de fevereiro.
De acordo com Martin, a cidade de Manaus e seu entorno configuram o
laboratório ideal para esse tipo de investigação. Isso porque a capital
amazonense – com várias usinas termelétricas, quase 2 milhões de
habitantes e 600 mil carros – está rodeada por 2 mil quilômetros (km) de
floresta. Na época das chuvas, a região chega a ter níveis de material
particulado tão baixos quanto os existentes na era pré-industrial.
Em 2010, Martin submeteu ao DoE uma proposta para trazer ao Brasil a infraestrutura do
Atmospheric Radiation Measurement (ARM) Facility –
um conjunto móvel de equipamentos terrestres e aéreos desenvolvido para
estudos climáticos, principalmente sobre o processo de formação de
nuvens e de transferência de radiação.
Com o projeto aprovado, uma parceria entre DoE, FAPESP e Fapeam foi
articulada para potencializar o uso do observatório móvel por cientistas
do Brasil e dos Estados Unidos. O resultado foi uma
chamada conjunta de propostas lançada em 2013 com financiamento total de R$ 24 milhões.
Seis projetos foram aprovados e se somaram a outros já em andamento, como o Temático “
Processos
de nuvens associados aos principais sistemas precipitantes no Brasil:
uma contribuição à modelagem da escala de nuvens e ao GPM (Medida Global
de Precipitação)”, coordenado por Luiz Augusto Toledo Machado, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e o Temático “
GoAmazon: interação da pluma urbana de Manaus com emissões biogênicas da Floresta Amazônica”,
coordenado por Artaxo e Maria Assunção Faus da Silva Dias, do Instituto
de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.
Atualmente, a Fapeam está com um edital aberto para pesquisadores amazonenses interessados em se unir à campanha do GOAmazon.
Em janeiro de 2014, o ARM Mobile Facility (AMF) começou a ser
instalado na cidade de Manacapuru, a cerca de 100 quilômetros a oeste
(vento abaixo) de Manaus. O local foi escolhido porque recebe em pelo
menos metade do ano a pluma de poluição da capital trazida pelos ventos
alísios, que sopram de leste para oeste. No restante do tempo, a região
recebe apenas ar muito limpo, sendo possível comparar as duas situações.
O observatório móvel é composto por 11 contêineres repletos de
sensores, radares e outros equipamentos apropriados para coletar e
analisar as partículas de aerossóis e os diversos gases presentes na
atmosfera, além de medir propriedades de nuvens e parâmetros
meteorológicos como temperatura, umidade e velocidade dos ventos. Outros
quatro contêineres foram instalados no sítio de pesquisa – batizado de
T3 – pelos parceiros brasileiros do GOAmazon.
Contêineres do ARM instalados no município de Manacapuru
(clique na foto para ampliar)
Ao todo, 50 pesquisadores trabalham no local e acompanham diariamente
as medições para garantir que seja adquirido o melhor e mais completo
conjunto de dados durante a operação. Os extensos dados serão colhidos
continuamente até dezembro de 2015 – prazo previsto para o término do
experimento.
“O ARM-AMF já esteve em países africanos, como a Nigéria, na
Alemanha, na China e na Índia. Mas é no Brasil que ficará pelo período
mais longo. É o maior experimento que nós, do DoE, já fizemos”, comentou
Wanda Ferrel, diretora do programa ARM.
Sítios complementares
Durante os quase 100 quilômetros que a pluma de poluição de Manaus
percorre até Manacapuru, as partículas interagem com os gases da
atmosfera e chegam ao destino final bastante modificadas. A localização
do sítio T3 tem a vantagem de possibilitar aos cientistas estudar o
resultado dessa transformação e seu impacto nas nuvens e no clima local.
No entanto, observou-se a necessidade de comparar os dados com medições
feitas em locais expostos mais diretamente à poluição manauara.
Com apoio da FAPESP, por meio do projeto Temático coordenado por
Artaxo, um contêiner com equipamentos semelhantes aos existentes em
Manacapuru foi instalado no município de Iranduba, situado na margem do
Rio Negro oposta à cidade de Manaus. O sítio de pesquisa sediado dentro
do hotel de selva Tiwa é chamado pelos participantes do GOAmazon de T2.
Paulo Artaxo apresenta a pesquisadoras norte-americanas os equipamentos do contêiner
instalado no município de Iranduba (clique na foto para ampliar)
Em uma primeira análise dos dados que estão sendo coletados desde
janeiro, o grupo de Artaxo, formado por 10 pesquisadores, já encontrou
resultados impressionantes.
“Observamos no T2, em Iranduba, concentrações significativas de
dióxido de enxofre não detectadas no T3, em Manacapuru. Também notamos
que em ambos os sítios de pesquisa há forte predominância de aerossóis
orgânicos – responsáveis por até 85% da massa das partículas –, mas a
composição química muda radicalmente de um local para outro, como
resultado dos processos químicos atmosféricos. Observamos ainda, em
Manacapuru, níveis duas vezes mais altos de ozônio do que os verificados
em Iranduba”, contou Artaxo.
De acordo com o pesquisador, a concentração de ozônio registrada em
Manacapuru – algo na ordem de 40 partes por bilhão (ppb) – é alta o
suficiente para danificar os estômatos das folhas e, consequentemente,
prejudicar o processo de fotossíntese e emissão de vapor d’água.
“Os impactos da poluição atmosférica não são iguais em todos os
lugares. Há particularidades nos processos de química atmosférica que
aparecem da interação da pluma urbana com os compostos orgânicos
voláteis (VOCs, na sigla em inglês) emitidos pela vegetação”, explicou
Artaxo.
Os VOCs correspondem a algumas centenas de substâncias – dentre as
quais as mais conhecidas são os isoprenos e terpenos – emitidas pela
vegetação como resposta ao estresse oxidativo. Um dos objetivos do
projeto de Artaxo é descobrir o quanto esse estresse vegetal é
intensificado pela poluição, uma vez que os VOCs também podem se
transformar em partículas de aerossóis, funcionar como núcleos de
condensação de nuvens na atmosfera e interferir nos processos de
formação de nuvens e de chuva.
Outro projeto em andamento no âmbito do GOAmazon, sob coordenação de
Jeff Chambers, do Lawrence Berkeley National Laboratory, órgão ligado ao
DoE, tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre as funções do
VOCs na fisiologia das plantas e entender como as emissões mudam de
acordo com a quantidade de luz, de chuva e como tudo isso afeta o
ecossistema florestal. As medições do grupo de Chambers estão sendo
feitas em um conjunto de torres situado 50 km ao norte de Manaus,
próximo ao km 34 de uma estrada de terra conhecida como ZF2.
Uma das torres usadas para medir emissões de compostos orgânicos voláteis
(clique na foto para ampliar)
Outro conjunto de torres usado pelo grupo fica na Reserva Biológica
de Uatumã, uma área de floresta distante 160 quilômetros a nordeste de
Manaus, onde a poluição urbana não chega. No local, chamado de T0, está
sendo construída uma torre de observação com 320 metros de altura
pertencente ao projeto Torre Alta de Observação da Amazônia (ATTO, na
sigla em inglês) – uma parceria do Instituto Nacional de Pesquisa da
Amazônia (Inpa) com o Instituto Max Planck de Química, da Alemanha.
O ATTO, cujo objetivo é compreender melhor a interação entre a
biosfera e a atmosfera, é liderado por Antonio Ocimar Manzi, pesquisador
do Inpa e coordenador-geral do GOAmazon no Brasil.
A infraestrutura para coleta de dados do GOAmazon conta ainda com
duas torres instaladas dentro da cidade de Manaus, na sede do Inpa
(sítio T1), além de sítios complementares de projetos associados, dois
balões meteorológicos capazes de subir até 2 quilômetros de altura e
dois aviões de pesquisa.
Uma das aeronaves, pertencente ao laboratório americano Pacific
Northwest National Laboratory (PNNL), chegou ao Brasil no dia 16 de
fevereiro e deve ficar até o final de março, quando se encerra o período
das chuvas. Durante esse período, serão realizados entre 20 e 25 voos
com cerca de 4 horas de duração cada. Entre os vários equipamentos
existentes no avião, há sensores nas asas capazes de medir o tamanho das
gotas presentes nas nuvens.
Avião de pesquisa Gulfstream-1, do Pacific Northwest National Laboratory (PNNL), dos Estados Unidos
(clique na foto para ampliar)
“Seguiremos a evolução da pluma de poluição até o momento que ela
perde sua assinatura, para ver como ocorre esse processo. O experimento
foi desenhado com o objetivo de caracterizar a pluma e entender a
intensidade e a extensão da perturbação que ela causa na atmosfera da
floresta. É um conhecimento que vai muito além do caso específico de
Manaus”, disse Karla Longo, pesquisadora do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenadora brasileira do projeto
Intensive Airbone Research in Amazonia (IARA), parte do GOAmazon.
Uma nova campanha aérea está prevista para ocorrer nos meses de
setembro e outubro de 2014, época da seca na Amazônia. Nessa ocasião, as
medições serão feitas tanto pela aeronave americana quanto por um avião
alemão que voa em altas altitudes. Ambos seguirão o mesmo trajeto, mas
em diferentes alturas.
Banco de dados de acesso público
Todas as informações geradas pelos diversos projetos e sítios do
GOAmazon estão sendo compartilhadas em um banco de dados de acesso
público, com cópias em Manaus, em São Paulo e nos Estados Unidos.
“Somente cerca de 5% dos dados que estão sendo coletados vão ser
aproveitados nesse primeiro momento, pois não temos fôlego suficiente
para processar toda a informação que está sendo coletada. Mas essa base
de dados ficará disponível para qualquer pesquisador e para alunos
interessados e será uma material riquíssimo para teses e projetos a
serem desenvolvidos pelos próximos 20 anos, pelo menos”, avaliou Artaxo.
Para o pesquisador, no entanto, o ideal seria manter uma estrutura
permanente, equivalente à montada em Manacapuru, para acompanhar com
dados concretos os impactos das mudanças climáticas na Amazônia e nos
demais biomas brasileiros. Estruturas como essa, disse Artaxo, existem
em diversos locais dos Estados Unidos, da Europa e até mesmo na China.
“O Brasil precisa ter um sistema avançado de monitoramento de
mudanças ambientais que estão ocorrendo e impactando fortemente os
ecossistemas brasileiros. Ou convencemos o DoE a manter essas
instalações por mais tempo no país ou o governo brasileiro implementa um
programa nacional voltado a monitorar propriedades críticas dos
ecossistemas brasileiros. O ideal seria ter uma rede com estações de
medição na Amazônia, na Mata Atlântica, no Pantanal, na Caatinga, no
Cerrado, pois cada bioma tem fragilidades diferentes e é importante
entender processos que já estão afetando o funcionamento destes
ecossistemas”, disse Artaxo.
Além do custo inicial para a aquisição dos equipamentos, o grande
desafio é a manutenção e a operação do complexo sistema. Os instrumentos
são frágeis, requerem manutenção constante e uma equipe de cientistas
acompanhando em tempo integral. A grande dúvida é como seria financiada a
empreitada no longo prazo.
Desdobramento do LBA
A maior parte das instalações usadas no GOAmazon tem origem nas
pesquisas realizadas no âmbito do LBA, uma cooperação internacional
financiada por Brasil, Estados Unidos e Europa que se articulou no
início dos anos 1990 e se intensificou entre os anos de 1998 e 2005. O
objetivo do LBA é compreender a influência da Amazônia no clima global e
entender como as atividades antrópicas e as mudanças climáticas
poderiam afetar esse bioma. Recentemente, o LBA iniciou a execução da
Fase II do programa, focado nos próximos 10 anos.
Desde 2005 o governo brasileiro assumiu o Programa LBA, mantido com
recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sob
coordenação do Inpa.
De acordo com Manzi, o GOAmazon representa uma continuação e um
aprofundamento de temas antes investigados no LBA. “Já conhecemos muito
sobre microfísica de nuvens, mas ainda há muito a aprender. Isso
permitirá aprimorar os algoritmos que representam os processos de
formação de nuvens e produção de chuva nos modelos climáticos. Resultará
não apenas em previsões meteorológicas mais precisas, como também em
projeções de cenários futuros mais confiáveis – o que é extremamente
importante para a definição de políticas públicas e para o planejamento
de longo prazo”, avaliou Manzi.
Matéria de Karina Toledo, da
Agência FAPESP, publicada pelo
EcoDebate, 28/02/2014
http://www.ecodebate.com.br/2014/02/28/projeto-coletara-dados-para-entender-como-a-poluicao-de-manaus-pode-afetar-o-regime-de-chuvas-da-regiao/