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18 de novembro de 2012

DEPOIMENTOS DE FAMOSOS SOBRE OS RIOS DE SUAS VIDAS - CELEBRAÇÃO DA SEMANA DO RIO SOSRIOSBR 2012 - 19 A 24 NOV



ENTREVISTA:  QUAL O RIO QUE PASSEOU EM SUA VIDA?

Por Mariana Sgarioni

"O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."

Alberto Caeiro

Ele pode ser estreito, tímido, meio ressecado e até um tanto turvo. Pode estar maltratado, malcheiroso. Ou ainda existir somente em nossa cabeça. Não interessa: o rio da nossa aldeia sempre será o mais belo, como bem lembra Fernando Pessoa. Até porque nós só enxergamos beleza naquilo que guarda um significado especial para nós - mesmo que esse significado, muitas vezes, não faça sentido nenhum para quem está de fora. Veja estes versos, por exemplo: "Quando vi você passar/Senti meu coração apressado/Todo o meu corpo tomado/Minha alegria a voltar/Não posso definir aquele azul/Não era do céu/Nem era do mar/Foi um rio que passou em minha vida/E meu coração se deixou levar". Dá para imaginar que esse rio, fonte de inspiração de Paulinho da Viola, seja nada menos do que uma escola de samba? Sim, é. A Portela, no caso.

Pois são vários os rios que passam em nossa vida. Alguns deixam tantas marcas que chegam a mudar nosso curso. O artista visual Arthur Omar, por exemplo, mudou toda sua visão de mundo quando caiu sem querer nas águas do Amazonas e quase morreu afogado. Já o também artista visual Emanoel Araújo conheceu o desencanto do mundo ao ter uma experiência semelhante de quase afogamento - só que na infância, no pequeno rio que corta sua cidade, Santo Amaro da Purificação (BA).

Imponente como o Amazonas, poluído como o Tietê, bucólico como um córrego de vilarejo. Ou tão apaixonante que arrebanha devotos desenfreados, como o São Francisco, que vem rendendo tantas discussões. Não importa. Onde há água, há vida. E, onde há vida, há história para contar.

Portanto, prepare-se para conhecer algumas delas. Enquanto isso, tente lembrar qual foi o principal rio que passou em sua vida. Suas lembranças com certeza lhe trarão gratas surpresas.


Moacyr Scliar (escritor gaúcho):

"O rio da minha vida é o Guaíba, que banha Porto Alegre. Aliás, não é bem um rio. A definição do Guaíba foi, durante muito tempo, objeto de apaixonada discussão, dessas discussões tão típicas de Porto Alegre e que às vezes atravessam décadas, perpetuadas nas mesas de bar, nas rodas de chimarrão. Na verdade, o Guaíba é parte de um verdadeiro complexo hidrográfico com numerosas ilhas, entre elas a Ilha das Flores, cenário de um pungente documentário sobre catadores de lixo, assinado pelo cineasta Jorge Furtado (em 1989). Confluem aqui cinco rios: Jacuí, Caí, Taquari, Gravataí e Sinos. Cinco rios, como os dedos de uma mão - diz-se que o município próximo a Porto Alegre, Viamão, tem esse nome exatamente por causa disso, porque de lá pode-se dizer 'vi a mão'. Desde criança eu freqüentava as praias do Guaíba, que não são exatamente as paradisíacas praias nordestinas, mas era o que tínhamos. Ali andávamos de barco, ali pescávamos. Parte do Guaíba foi aterrada, e a esse lugar - a 'Brizolândia' (homenagem ao prefeito de então, Leonel Brizola), que à noite se apresentava deserta, às vezes com denso nevoeiro - a gente ia, nos velhos carros de nossos pais, namorar. Mais: o crepúsculo sobre o Guaíba é, segundo os porto-alegrenses, o mais belo do mundo. Uma vez o poeta Mario Quintana levou o escritor e jornalista carioca Marques Rebelo para ver o crepúsculo do alto do Morro Santa Teresa e descreveu-o como só um poeta pode fazê-lo. Marques Rebelo não dizia nada. Voltando ao Rio de Janeiro, escreveu em sua coluna de jornal: 'Eles não têm nada para mostrar, então ficam falando daquele crepúsculo deles'. Disse Fernando Pessoa: 'O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia'. Troquem 'o rio que corre pela minha aldeia' por Guaíba e vocês entenderão os porto-alegrenses."


Arthur Omar (artista visual autor do livro O Esplendor dos Contrários - CosacNaify, 2001 -, com fotos do Rio Amazonas):

"Os rios da minha vida foram dois. Um era o menor rio do mundo. O outro, o maior de todos. No fim, os dois se uniram, um fazendo foz no outro. Na casa onde passei a infância, passava um córrego. Uma miniatura de rio. Margens desenhadas, pedras no fundo, ruído de água, uma pequena curva, e desaparecia sob o muro que dava para a outra casa. Ouvir o córrego, o murmurinho das miniondas: iniciação à música. E havia a palavra 'córrego', mágica, motivo de orgulho, ninguém no colégio no Rio de Janeiro conhecia, 'no meio da viagem tinha um córrego': iniciação à literatura. Só eu sabia o que era um 'córrego': um rio para sentar dentro. Muitos anos depois, fui levado ao Rio Amazonas, para uma série de fotos, que aceitei por aceitar. Nunca desejei o Amazonas. Sartreano até a medula, sempre achei a natureza uma coisa para os outros, não para mim, que a considerava o inferno, geralmente verde. Mas, de repente, cheguei ali. O Rio Amazonas estava na cheia, não se viam as margens nem coisa alguma no mundo, tudo era água, absoluta. Estar ali, um puro fluxo através do líquido, barrento, prateado, refletindo as nuvens do céu. Aquele cheiro de água doce, que cola no nariz, tão diferente do mar. Nunca desejei o Amazonas, e agora, no Rio Amazonas, parei de desejar qualquer outra coisa. Quando o nosso barco virou e caímos na água durante uma tempestade, pensei que o rio da minha vida, recém-descoberto, iria se transformar no rio da minha morte. Mas, com o desejo estoicamente amortecido, isso não tinha a menor importância. Quando fui recolhido por uma lancha providencial, uma parte de mim se recusou a sair da água, ou pelo menos pensou duas vezes. Acredito que estou lá até hoje, uma pequena parte, vivendo uma vida própria, num rio particular. O rio é meu. Eu defendo esse rio, não porque ele seja um patrimônio da humanidade, ou porque esteja ameaçado pela cobiça internacional, mas porque ele me pertence. Ele é totalmente meu porque quando estive nele aprendi a não querer ter absolutamente nada. O fluxo não sou eu. Eu é que entro no fluxo."


Emanoel Araújo (artista plástico baiano):

"Não tenho como não pensar imediatamente no Rio Subaé, o rio que corta minha cidade, Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Nosso rio já foi muito cantado por Caetano e Bethânia, na linda canção Purificar o Subaé. Isso porque foram poluindo nosso rio com o passar dos anos - ele foi se transformando em algo perigoso para todos que tanto o amavam. Fui me afastando pouco a pouco dele. Construíram uma fábrica de chumbo ao lado do Subaé, imagine. Justo ao lado do rio da minha infância. Era nele que eu brincava, era com ele que eu me fascinava. Foi ele que me deu também o primeiro susto, que me chamou para a realidade, que me mostrou o desencanto do mundo: certa vez, saltei dentro dele e minha cabeça ficou presa em um de seus bancos de areia. Tive dificuldades para me soltar. Era como se ele estivesse me chamando a atenção, não sei. Como todas as minhas referências de infância, acho que o Subaé aparece, sim, nas minhas obras. Essas referências ficam num espaço de memória que a gente resgata na criação. As curvas, os ângulos: estão todos ali, representados em tudo o que faço."


Giselle Beiguelman (artista multimídia, autora do curta Rios de Paulo, 2008, sobre os rios de São Paulo):

"Meus rios não são exatamente rios. São mares. Um dos que mais me atraíram e me fizeram repensar boa parte do meu trabalho foi o de Ushuaia, na Patagônia (Argentina). Ele mostra uma experiência de fim de mundo. Você sabe que a partir dele não tem mais terra, tudo o que existe no mundo está submerso, debaixo d'água. A força da paisagem ali é impressionante, tudo está condicionado pela natureza. Tem também uma situação geográfica bastante louca - tudo é muito perto e ao mesmo tempo super distante. E há um silêncio ruidoso, um paradoxo insólito de ver toda aquela imensidão e saber que logo ela vai deixar de existir, pois é gelo. As cores são as minhas favoritas, numa paleta que eu nunca tinha visto: branco, azul, tons de laranja e verde, tudo numa luz muito particular. Depois disso, uma travessia entre Aracaju (SE) e Mangue Seco (BA) também me trouxe as mesmas cores, só que muito mais fortes. As águas eram mais férteis. A partir daí, comecei a desenvolver trabalhos de vídeo e foto, criando lugares que não existem - mas poderiam existir. São lugares possíveis. Mixei, por exemplo, a Patagônia com Aracaju. Virou Patacaju."


Antônio Araujo (diretor teatral que criou o espetáculo BR-3, 2005, encenado no Rio Tietê):

"Meu rio é o Tietê. Apesar de morar em São Paulo, o paulistano não conhece o Tietê de verdade. Pois foi esse meu trabalho, mostrar o lugar ao construir um espetáculo que pegava 4,5 quilômetros de extensão do rio. Para isso, eu tinha que estar perto dele. Foram meses e meses de uma construção de relação. Havia imprevistos, como o cheiro forte, a sujeira, que nos obrigavam a tomar cuidados, vacinas. Até a hora em que percebi o rio como um organismo vivo, que estava, ao mesmo tempo, aberto à nossa obra, mas também nos recusando, dificultando nosso trabalho. Sem dúvida, foi uma experiência que marcou minha vida. Imagine estar num lugar que é um não-lugar. É um rio que não é um rio, que ninguém enxerga - é como se ele não existisse para quem mora em São Paulo. Mas, ao estar dentro dele, é possível perceber que, sim, ele é um rio. Que corre devagar, tem um tempo oposto ao das marginais que estão ao lado, com uma vida expressa. O Tietê é diferente, é lento. E está doente, cheio de lixo, garrafas plásticas. Ele representa uma veia doente que transpassa a cidade. E essa doença foi causada por ninguém menos do que nós mesmos."


Milton Hatoum (escritor amazonense):

"O rio da minha infância, que alimenta meu imaginário e que me alimenta, é o Rio Negro. Mesmo morando distante dele, me vem à mente o tempo todo, chego a sonhar com ele. Nasci em Manaus, a 300 metros do Rio Negro. Como é de imaginar, toda a cidade tem uma relação muito forte com ele, a vida gira em torno do rio. Euclides da Cunha dizia que o rio é a estrada para toda a vida, e eu concordo. No caso do Rio Negro, ele carrega a memória da Amazônia, de Manaus, a história indígena e de toda a região. É por isso que ele está presente em toda a minha literatura, de cabo a rabo. No meu último romance (Órfãos do Eldorado, Cia das Letras, 2008), ele é o personagem principal. Sempre que vou a Manaus, a primeira coisa que faço é pegar uma voadeira e sair para navegar. Contemplar, pensar. Sabe, destruíram muito a minha cidade, mas deixaram o rio. Deve ser porque ele é poderoso, assim como todos os rios da Amazônia - conheço gente que vem de longe, muito longe, para conhecer essa força. Quem já viu sabe o que é."



Carlos Nader (videoartista, dirigiu o documentário São Gabriel da Cachoeira-San Felipe, filmado na região amazônica)

"Se for falar em um rio idealizado, meu rio é o Rio de Janeiro. Já se for o real, é o Rio Pinheiros. O Rio de Janeiro é o lugar em que eu gostaria de viver - mas, na realidade, vivo às margens do Pinheiros, esse esgoto a céu aberto, feio, que cheira mal, poluído. Infelizmente. O Rio me ensinou que a alegria pode, sim, ter uma dimensão profunda. Explico: fui educado em uma escola francesa, que nos mostrava, por meio de escritores densos, como Sartre, por exemplo, que a alegria é algo raso, superficial. O Rio está aí para mostrar justamente o contrário. A bossa nova, o samba, o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Isso é alegria e está longe de ser superficial. É lógico que tem também o outro lado, o lado excludente, como se ninguém tivesse o direito de ser triste, pelo menos de vez em quando. O Rio Negro também me impressionou bastante. Ele parece um chá-mate, é forte, não tem nem mosquito por perto. Para filmar (o documentário São Gabriel da Cachoeira-San Felipe, 1998), ficamos em uma cabana, no meio do nada, só com o rio ao nosso redor, um volume incrível de água. Tive a sensação de um meio-termo de uma viagem interplanetária."



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