Uso das águas do rio São Francisco na Paraíba: crônica de um insucesso anunciado
Eng. João Suassuna - Fund. Joaquim Nabuco - UFPE
“Quem tem água tem tudo!”….. Será?
No início do mês de outubro, fomos convidados para participar da III Semana de Geografia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), campus de Cajazeiras, proferindo uma conferência sobre a hidrologia do Nordeste seco, com enfoque na transposição do rio São Francisco. Na ocasião, com vistas a conhecermos e avaliarmos melhor o estágio em que se encontra o projeto da transposição na Paraíba, a UFCG nos possibilitou uma visita ao canteiro de obras, localizado no município de São José de Piranhas, distando cerca de 32 km de Cajazeiras.
Nessa visita, fomos acompanhados por representantes do sindicato dos trabalhadores rurais de São José de Piranhas, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e de professores da referida universidade. Nas obras, pudemos verificar o ritmo acelerado em que se encontram, o que nos motivou a refletir sobre as consequências que serão impostas ao ambiente natural do Semiárido paraibano, quando da chegada das águas do São Francisco naquela região.
Inicialmente, procuramos manter contatos com alguns produtores rurais da localidade Curral das Onças, por onde passará o canal do Eixo Norte do projeto, para ouvir deles suas expectativas quanto à chegada das águas nas suas propriedades. O que pudemos constatar foi a existência de unanimidade na expressão “quem tem água tem tudo”. Em nossa opinião, não é bem assim que as questões hídricas devam ser encaradas naquela região, principalmente sendo ela detentora de ambiente natural de notável singularidade no tocante à sua vegetação do tipo caatinga, a sua geologia cristalina e um clima diferenciado, com irregularidade nas chuvas, temperaturas elevadas e evaporação exacerbada. Temos que questionar, sim, esse tipo de assertiva, principalmente partindo de pessoas que não possuem os mínimos conhecimentos técnicos necessários à condução de práticas irrigacionistas, dentro de parâmetros técnicos adequados, notadamente em uma região de geologia e clima extremamente complexos como os ali existentes.
Do jeito que essas questões estão sendo postas pelos agricultores, parece-nos existir uma enorme desinformação, não só sobre o percurso que as águas irão realizar até a chegada na referida localidade, mas, e principalmente, sobre as conseqüências que uma irrigação mal conduzida será capaz de trazer ao ambiente natural da região. No nosso modo de entender, diante das características ambientais e da falta do conhecimento técnico necessário à condução dos sistemas produtivos, isso irá acarretar um enorme fracasso, quando as águas do Velho Chico começarem a chegar àquela localidade e, posteriormente, serem utilizadas na irrigação.
Existe também outro complicador a ser considerado, que é a falta de clareza no projeto, no que diz respeito à forma de como as águas irão chegar às torneiras das populações. O que está claro é que as águas do São Francisco irão abastecer as principais represas nordestinas, após o que, serão utilizadas no agro e hidronegócio. O dimensionamento dos canais, com suas capacidades de transportar grandes volumes de água, dão provas disso.
Para chegarem ao extremo oeste paraibano, por exemplo, as águas do rio São Francisco terão que, necessariamente, percorrer dois túneis que estão em fase de construção. No primeiro (Cuncas 1- com cerca de 15 km de comprimento), as águas virão do município de Maurití, no estado do Ceará, passarão por sob o município de Monte Horebe, no estado da Paraíba, e desembocarão na Represa dos Morros, a qual está sendo construída próxima ao município de São José de Piranhas. Uma vez nessa represa, as águas serão conduzidas para um segundo túnel (Cuncas 2 – com cerca de 4,5 km de comprimento) para chegarem em Cajazeiras e, de lá, continuarem seu destino para os estados do Ceará (abastecendo a represa do Castanhão, na bacia do Jaguaribe) e Rio Grande do Norte (abastecendo as represas Santa Cruz, na bacia do Apodí e Armando Ribeiro Gonçalves, na bacia do Piranhas-Açu).
Além de dar uma idéia da magnitude do projeto, o propósito desse relato foi o de, também, denunciar os usos inadequados que serão dados às águas do rio, notadamente por aqueles que se iludem ao acreditar que o sucesso da irrigação está no acesso, puro e simples, à água e nada mais. Sob esse aspecto, a transposição na Paraíba poderá se somar aos insucessos havidos em outras regiões semiáridas do Nordeste. Referimo-nos aos reassentamentos de populações, ocorridos quando da construção do lago da hidrelétrica de Itaparica, sob a responsabilidade da Chesf.
Naquela obra, populações inteiras que sobreviviam nas margens do rio São Francisco, com a irrigação, principalmente das culturas da cebola e do alho, produzidas sobre solos de aluvião, passaram, após o enchimento da represa, a ocupar terras mais elevadas e distantes de sua cota máxima de represamento, ou seja, as novas áreas de plantios irrigados passaram a ser localizadas sobre terrenos de geologia cristalina. Nessas novas áreas, os solos, em sua grande maioria, se apresentavam pedregosos e com níveis de fertilidade bastante inferiores quando comparados aos solos de aluvião, citados anteriormente. Esses problemas surgidos chegaram a obrigar alguns produtores rurais a mudarem seus sistemas produtivos, muitos deles passando a criar pequenos ruminantes (caprinos e ovinos), em substituição às culturas irrigadas. Alguns produtores conseguiram se adaptar a estas novas iniciativas, outros não.
O caso dos produtores em São José de Piranhas é semelhante ao que foi exposto acima. Nas conversas mantidas com eles, isso ficou muito claro. No sítio Curral das Onças, por exemplo, a área produtiva da propriedade ficava localizada em uma região de baixio, cujas características dos solos (aluvião) permitiam ao produtor, colheitas satisfatórias, principalmente do arroz, da mandioca, do milho e do feijão. Segundo podemos constatar, essa área era considerada a de maior riqueza da propriedade, devido não apenas a sua fertilidade natural, adquirida ao longo de eras, mas, e principalmente, pela existência de índices adequados de umidade, necessários ao sucesso de produção das culturas. Ocorre que essas áreas férteis e produtivas nessa propriedade irão ficar submersas com a construção da Represa dos Morros.
Indagado sobre as expectativas da chegada das águas do rio São Francisco em sua propriedade, o produtor respondeu que estava para receber uma indenização, e que iria iniciar um trabalho de irrigação numa área mais altas da propriedade, e esperava, com essa mudança, colher produções semelhantes àquelas obtidas em seus baixios. Ora, não demoramos muito para concluir que as possibilidades de insucessos nessas novas investidas eram muito elevadas. De característica geológica cristalina, a parte mais alta de sua propriedade apresenta solos de difícil drenagem. Somadas a essas dificuldades, à presença de condições climáticas severas, que implicam em elevados índices de evapotranspiração, e a condução de uma irrigação contínua e sem a assistência técnica necessária, são apontadas como a receita para o início de um processo severo de salinização daquela área.
Alertamos que foram as dificuldades de se proceder às drenagens no Nordeste seco, as principais causas da salinização em cerca de 30% das áreas dos perímetros irrigados do DNOCS. A salinização será, sem dúvida alguma, a conseqüência mais severa a ser imposta pelo projeto, ao meio ambiente em São José de Piranhas, por aqueles que vêm na irrigação uma atividade simples, cuja condução se restringe, única e exclusivamente, a se “colocar a água no pé das plantas” e nada mais. Em tais casos, tem que haver a preocupação com outras condicionantes de igual importância, como as drenagens e as qualidades das águas e dos solos, entre outros.
Isso posto, fica o nosso alerta, para aqueles que estão sendo indenizados pela passagem dos canais em suas propriedades, sobre a necessidade de se contar com uma assistência técnica de bom nível, para as orientações necessárias à implantação de sistemas alternativos de produção, em substituição às irrigações que vinham sendo praticadas anteriormente. Essa será a forma de se minimizar os problemas que serão causados por um projeto que foi dimensionado, prioritariamente, para o benefício do grande capital.
Recife, 21 de outubro de 2010
João Suassuna, articulista do EcoDebate, é Engº Agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
EcoDebate, 22/10/2010
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