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A tal situação "excepcional" se repete todos os anos, desde 2004: às vésperas do seu inverno, a Argentina bate à porta do Brasil buscando energia elétrica para atender à sua demanda, quando parte do gás natural usado pelas termelétricas vizinhas é direcionada para o aquecimento comercial e residencial.
A Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) de 26/04/2010 estabelece as seguintes diretrizes para o chamado "suprimento de energia elétrica excepcional com devolução obrigatória": entre maio e agosto de 2010 o Brasil exporta energia de suas usinas hidrelétricas. O montante exportado seria então integralmente devolvido pela Argentina e Uruguai ao Brasil entre setembro e novembro de 2010. Aparentemente uma troca justa. Apenas aparentemente, como demonstraremos.
Ao caracterizar essa transação como um "escambo" de energia, sem trocas monetárias, o governo brasileiro passa a ideia de que a operação é totalmente neutra, sem impacto sobre consumidores de energia e empresas brasileiros. Isso não é verdade.
A segurança energética brasileira é construída a duras penas, com base em dois pilares: a) na contratação antecipada de 100% da demanda projetada; e b) nos recursos obtidos por meio de encargos pagos pelo consumidor de energia como o Encargo de Serviços de Sistema (ESS) e Encargo de Energia de Reserva (EER).
No primeiro pilar estamos falando de dezenas de bilhões de reais pagos anualmente pelo consumidor brasileiro para garantir a contratação da capacidade necessária para assegurar o atendimento de 100% de nossa demanda.
Já o segundo pilar dos encargos - uma espécie de impostos específicos do setor elétrico, embutidos na conta de luz - custeia tanto a operação do sistema quanto os investimentos em usinas "de reserva". O ESS, por exemplo, resultou num custo superior a R$ 2,3 bilhões repassados à conta de luz paga pelos consumidores em 2008/2009, custo decorrente de uma decisão do governo federal para preservar água nos reservatórios hidrelétricos, decisão que permanece sem uma análise técnica de custo-benefício. O EER, cujo custo começa a aparecer nas tarifas, tem viabilizado a contratação de usinas a biomassa e eólicas.
A Argentina, por outro lado, não tem feito sua lição de casa e procura, de forma oportunista, "compartilhar" de nossa dura e custosamente conquistada segurança energética como se não pudesse prever que seu inverno acontece todos os anos. Além disso, nosso vizinho adotou, ao longo do tempo, medidas populistas (vide os preços congelados para o mercado residencial de gás natural) que não constroem um ambiente econômico indutor de investimentos.
Da forma como está estruturado, o escambo beneficia a Argentina e Uruguai sem contrapartidas para o Brasil, permitindo que os últimos se utilizem de nossa capacidade de reserva para sistematicamente atender às suas demandas sazonais sem arcar com os investimentos estruturais necessários. Afinal, pensariam nossos vizinhos: "Para que investir de forma preventiva? Basta aproveitar, todo ano, a suposta 'sobra' do Brasil".
Aliás, como o Operador Nacional do Sistema (ONS), órgão que decide toda a operação interligada do país, explicaria à sociedade brasileira, o custo adicional que tem sido recorrentemente imposto ao consumidor para colocar em funcionamento algumas usinas por razões de "segurança energética". Afinal, há ou não "sobra" que nos permita ceder energia para a Argentina?
Além de beneficiar nossos vizinhos às custas dos nossos consumidores, note-se também os efeitos sobre as empresas do país: o governo brasileiro vem negociando a energia gerada por usinas brasileiras como se fosse dono das mesmas. Essas usinas pertencem a empresas estatais ou privadas que são afetadas por tais decisões de gabinete. Não cabe ao governo definir, fora das regras contratuais pré-estabelecidas, como a energia das usinas será comercializada.
Finalmente, o acordo prevê a "devolução" da energia no fim do ano, independentemente da necessidade brasileira naquele momento. Ignora-se a possibilidade de que a "devolução" possa ser ineficiente, deslocando a geração de uma usina com custos operacionais menores do que os das usinas argentinas e/ou uruguaias.
A linha argumentativa da Resolução do CNPE se ampara no "caráter excepcional", argumento que não se sustenta porque as dificuldades energéticas da Argentina não resultam de uma calamidade repentina para o qual se requer medidas emergenciais. Trata-se de uma situação estrutural decorrente da falta de investimentos. Nem se trata de um povo necessitado que precisa ser socorrido pelo povo brasileiro: o PIB per capita argentino é maior que o brasileiro. As empresas e consumidores residenciais na Argentina podem pagar pela energia elétrica advinda do Brasil. Basta definir as regras para a realização dessas transações comerciais.
Por que não se define um arcabouço para a comercialização da energia entre os países de forma transparente, competitiva e antecipada? É preciso interromper esse tratamento político para um assunto econômico e acabar com as "mesas de negociação" entre políticos dos dois países, que anualmente buscam uma justificativa para colocar brasileiros como "bonzinhos" e nossos vizinhos como "necessitados", tudo isso com o dinheiro dos consumidores e empresas brasileiros. O tema não tem nada de humanitário. É puramente econômico, e Argentina e Uruguai sabem muito bem disso.
Se essa for mais uma manifestação de uso político do setor elétrico brasileiro, chegou a hora de dar transparência a seus efeitos e interromper essa abordagem casuística e discricionária.
Claudio J. D. Sales é presidente do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)
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