O conceito de 'Atingido por barragem'
Por Luciane Costa e Silva - Especialista em Políticas Públicas pelo IE/UFRJ - lucianecostaesilva@yahoo.com.br |
1) Introdução
Com a experiência adquirida ao longo do tempo a Eletrobrás se voltou às questões sociais e ambientais e buscou estudar mais a fundo os impactos negativos, que as hidrelétricas causavam para as populações locais que as recebiam.
Dividido em três capítulos, Introdução, Desenvolvimento e Conclusão, esse texto se propõe a descrever de forma breve o que se entende por “Atingidos por Barragens”.
2) Desenvolvimento
É comum num primeiro momento achar que se trata do deslocamento das pessoas na área do reservatório. Na verdade, obras de engenharia dessa magnitude têm reflexos muitos mais extensos que o seu local de instalação e os efeitos negativos um alcance bem maior do que simplesmente a área do reservatório.
“a noção de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se, legitimação de direitos e de seus detentores” “...estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legítimo – e em alguns casos como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação...” (VAINER, 2008, p. 40).
VAINER identificou o conceito de atingido sob duas ópticas: a Concepção Territorial-Patrimonialista e a Concepção Hídrica.
2.1 Na Concepção Territorial-Patrimonialista, o atingido é unicamente o proprietário de terra. Há o dono da terra de quem o empreendedor comprará, conforme o direito brasileiro, que concede o direto de desapropriação ao empreendedor com base no reconhecimento da utilidade pública do empreendimento. Desse modo, as empresas do setor elétrico se limitavam a indenizar somente os proprietários de terras alagadas.
Não se reconhecia a existência de impactos ambientais e sociais. O único problema era o patrimonial-fundiário. Havia relações de negociação sobre o valor da terra para aqueles que tivessem documento comprobatório de sua posse. Caso o proprietário discordasse do valor proposto o empreendedor poderia depositar 80% do valor em juízo, assumindo imediatamente o domínio da propriedade. Caberia ao desapropriado provar em juízo, que o valor proposto pelo empreendedor não era justo. Levando em conta a falta de assessoramento, os custos e os problemas de lentidão da justiça, bem como a capacidade dos departamentos jurídicos das empresas.
A perspectiva territorial-patrimonialista vê a população como um obstáculo a ser removido, para garantir a viabilidade do empreendimento. O território atingido é tido como a área a ser alagada e a população atingida é constituída somente pelos proprietários de terras da área a ser inundada.
2.2 Na Concepção Hídrica o atingido é o inundado, não somente o proprietário, mas os posseiros, meeiros, ocupantes etc., o que amplia os custos do empreendimento. O atingido passa a ser também o inundado, que fica sujeito a um deslocamento compulsório.
Para VAINER (2008) o Resettlement Handbook da International Financial Corporation – IFC (2001) inova e amplia a compreensão do que seja, ou de quem seja o ‘atingido’ ao utilizar o termo ‘pessoas economicamente deslocadas’:
O objetivo da política de reassentamento involuntário é assegurar que as pessoas que são fisicamente ou economicamente deslocadas, como resultado de um projeto, não fiquem em situação pior, mas melhor do que estavam antes do projeto ser empreendido.
O deslocamento pode ser físico ou econômico. Deslocamento físico é a recolocação física das pessoas resultante da perda de abrigo, recursos produtivos ou de acesso aos recursos produtivos (como terra, água e florestas). O deslocamento econômico resulta de uma ação que interrompe ou elimina o acesso de pessoas aos recursos produtivos sem recolocação física das próprias pessoas (IFC, 2001).
VAINER (2008, p. 46-50) demonstra que entre 1994 e 2001 as agências multilaterais tais como a IFC, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento avançaram no conceito e chegaram ao consenso sobre a noção de atingido: “remete ao conjunto de processos sociais e econômicos deflagrados pelo empreendimento que possam vir a ter efeitos perversos sobre os meios e modos de vida da população.” (VAINER, 2008, p. 50).
O Banco Interamericano (1998), afirmou que a administração de um reassentamento, além de considerar o número de pessoas afetadas, deve também considerar a severidade das conseqüências, pois os impactos não se limitam aos movidos fisicamente, mas podem também afetar a população anfitriã e ter um “efeito de ondulação” em uma área mais ampla como resultado das perdas ou rompimento das atividades econômicas. Para exemplificar melhor, imagine se essas pessoas, que viviam de atividades econômicas a jusante, agora passassem a concorrer com os empregos das cidades que as recebessem. Provavelmente, a cidade anfitriã não estaria preparada para recebê-las e não haveria emprego, escolas e hospitais para acomodar os novos moradores.
O Banco Mundial, governos, empresas e organizações não governamentais constituíram a World Commission on Dams2 (2002), que alargou a definição de deslocamento englobando tanto o físico, quanto o “deslocamento dos modos de vida”. Para a WCD o deslocamento físico, seria propriamente dito o deslocamento de pessoas que vivem na área próxima do reservatório ou do projeto, ou seja, não só pelo enchimento do reservatório, mas também pelas obras de infra-estrutura próximas ao projeto.
A alteração dos ecossistemas e o alagamento de terras afetam os recursos disponíveis nessas áreas, bem como as atividades produtivas. No caso de comunidades dependentes da terra e de recursos naturais, continua a WCD, tem como conseqüência a perda de acesso aos meios tradicionais de subsistência, incluindo-se a pesca, a agricultura, a extração vegetal e a pecuária. Por exemplo, o deslocando de pessoas do seu acesso aos recursos naturais e ambientais essenciais ao seu modo de vida. Desta forma, para a WCD o “atingido” refere-se às populações que enfrentam um outro tipo de deslocamento (2002, p. 102).
A noção da temporalidade dos efeitos da implantação de barragens é também muito importante, em particular para as populações a jusante da barragem, uma vez que esses impactos não são sentidos apenas após o enchimento do reservatório. Os impactos podem ser verificados em momentos diferentes da implantação dos empreendimentos. Há grupos sociais, indivíduos e famílias, que os sofrem desde a divulgação das obras. Há os que são afetados durantes as obras, na fase do enchimento e da operação do reservatório, ou seja, ao longo do projeto diferentes atores sociais são impactados. Segundo Cortés (2008), desde o início das obras os rumores geram os primeiros impactos já que produzem incertezas na população, que se questiona se pode continuar sua vida normal: período de semeadura, investimentos, aquisições, entrada nas escolas, etc.
Em meados da década de 1980, segundo VAINER (2008, p. 55), o Setor Elétrico Brasileiro começou a ser questionado na esfera de suas concepções, estratégias e práticas relativas ao equacionamento e tratamento das populações das áreas de implantação de seus empreendimentos. Na literatura nacional e internacional, e na própria legislação ambiental emergente, a resistência das populações foi um dos principais motivos para que o setor elétrico buscasse mais conhecimento sobre o assunto e começasse a revisar procedimentos com o objetivo de minimizar potenciais conflitos.
A Eletrobrás liderou esse processo, primeiramente atentando para os verdadeiros impactos sociais e ambientais provocados por hidrelétricas, depois ampliando seu conceito de “atingido” para além daquele deslocado por conta do reservatório, incluindo as mudanças sociais, culturais, econômicas e territoriais.
No Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico (1990) a Eletrobrás expõe de forma clara e objetiva sua preocupação com os problemas social e ambiental na implantação de hidrelétricas e apontou diretrizes gerais a serem empregadas por todo o setor elétrico no planejamento e gerenciamento sócio-ambiental, respeitando as diferenças regionais, conforme indicado a seguir:
São expressivas as diferenças, não só entre as realidades regionais em que as empresas atuam, como também entre os quadros de recursos técnicos e financeiros com que contam. Portanto, o PDMA prioriza a formulação de um conjunto de diretrizes setoriais, que traduzam uma postura geral e que possam orientar a definição de diretrizes estratégicas ou programáticas, a serem detalhadas, por parte de cada empresa concessionária, para sua área de atuação. (II PDMA, 1990, p.16)
O remanejamento de contingentes populacionais em áreas onde são implantados empreendimentos do Setor Elétrico, em especial nos casos decorrentes da formação de reservatórios, constitui um ‘processo complexo de mudança social’. Implica, além da movimentação de população, em alterações na organização cultural, social, econômica e territorial da área onde o mesmo ocorre.
É consenso geral que o Setor Elétrico - a par de um objetivo imediato de liberar áreas para implantação de empreendimentos, de acordo com os dispositivos jurídico-legais pertinentes - tem a responsabilidade3 de ressarcir danos causados a todos quantos forem afetados por seus empreendimentos. O cumprimento desta responsabilidade, no entanto, ainda se dá de forma diferenciada entre as concessionárias e até por empreendimento de uma mesma concessionária, no que diz respeito ao tratamento das várias categorias sociais afetadas, sejam elas assemelhadas entre si ou variadas.
Diante da magnitude dos deslocamentos populacionais estimados em função do plano de expansão do Setor, destaca-se a necessidade de um entendimento conceitual unificado e de procedimentos daí decorrentes, em busca de um tratamento isonômico às categoriais sociais afetadas. Em especial, pressupõe-se que a negociação será a base do relacionamento do Setor Elétrico com a sociedade e, particularmente, com os grupos envolvidos.
Nos últimos anos, vem crescendo a importância das ações relativas à reorganização do espaço regional no planejamento dos empreendimentos elétricos, incluindo, além da aquisição de áreas para assentamentos populacionais, a relocação de elementos de infra-estrutura e de equipamentos de apoio à população e às atividades econômicas. Um dos principais problemas que as concessionárias enfrentam para viabilizar estes programas é a ausência de estimativas orçamentárias adequadas para estes itens e de um fluxo de recursos compatível com o atendimento dos processos sociais deflagrados e com o cumprimento de acordos firmados com a população.
O gerenciamento do remanejamento, enfocado na sua complexidade sócio-ambiental, pressupõe, portanto ajustes em diversas rotinas e procedimentos internos por parte das empresas do Setor, com possíveis repercussões na sua organização interna, de forma a permitir a estruturação de um processo coordenado da ação dos departamentos afetos aos vários aspectos da questão. (II PDMA, 1990, p.38-39 - grifo meu).
Mesmo tendo avançado na formulação do problema, reconhecendo a sua gravidade, o momento econômico que o SEB passava era muito grave. A dificuldade de financiamento do setor não permitia o cumprimento dos acordos com os atingidos, destacando dentre outros, o fim do Imposto Único de Energia Elétrica – IUEE. Fica claro que embora a Eletrobrás, principal player do setor elétrico, estivesse convencida – seja por pressões internacionais ou dos movimentos organizados – das questões sociais postas e da necessidade de solucioná-las, a crise econômica nacional e a falta de financiamento para o setor a impediram de por em prática suas conclusões, como observado na citação seguinte:
“...principais problemas que as concessionárias enfrentam para viabilizar estes programas é a ausência de estimativas orçamentárias adequadas para estes itens e de um fluxo de recursos compatível com o atendimento dos processos sociais deflagrados e com o cumprimento de acordos firmados com a população” (ELETROBRÁS, II PDMA 1990 p. 39).
As idéias e propostas formuladas pela Eletrobrás não se concretizaram e o tratamento aos atingidos piorou, porque alguns anos após alcançar tal compreensão o marco institucional do SEB foi alterado de forma substancial, iniciando-se um processo de privatização e de redução significativa dos investimentos em novas usinas. No novo modelo, as negociações passaram a ser com os empreendedores privados4. Pesquisas feitas com os atingidos no país demonstraram, que para as populações atingidas o progresso nunca chegou, conforme assinalado por Rothman (2002)5. Seria preciso rever os marcos regulatórios ambientais e do setor de energia. O tratamento das questões sociais vinha sendo direcionado pela Eletrobrás, num ambiente de investimento público. A partir do momento que o setor é privatizado, nos anos 90, os novos empreendedores não têm obrigações definidas pela regulação e legislação a seguir.
A legislação ambiental não considera as questões sociais e a partir do momento em que a ANEEL aprova a concessão, e concede a declaração de utilidade pública, não há na legislação indicação de sua responsabilidade específica sobre a matéria em questão. Assim como não há também, por parte do IBAMA, a responsabilidade de assessorar as populações atingidas. Sendo este órgão fiscalizador das condicionantes das licenças, atua somente quando os programas de compensação já foram executados.
3) Conclusão
Conforme afirmado pela Eletrobrás trata-se de um ‘processo complexo de mudança social’, não se tratando apenas do deslocamento das pessoas na área do reservatório. Também para o Banco interamericano “os impactos não se limitam aos movidos fisicamente, mas podem também afetar a população anfitriã e ter um “efeito de ondulação” em uma área mais ampla como resultado das perdas ou rompimento das atividades econômicas.”
Para o IFC (2001) o objetivo da política de reassentamento involuntário é assegurar que as pessoas que são fisicamente ou economicamente deslocadas, como resultado de um projeto, não fiquem em situação pior, mas melhor do que estavam antes do projeto ser empreendido.
Sabendo-se que o deslocamento pode ser físico ou econômico; (i) deslocamento físico é a recolocação física das pessoas resultante da perda de abrigo, recursos produtivos ou de acesso aos recursos produtivos (como terra, água e florestas); (ii) deslocamento econômico resulta de uma ação que interrompe ou elimina o acesso de pessoas aos recursos produtivos sem a recolocação física das próprias pessoas (IFC, 2001).
Para a WCD o deslocamento pode ser tanto físico, quanto o “deslocamento dos modos de vida”
Desta forma, percebe-se que esses empreendimentos causam além do deslocamento físico o deslocamento dos modos de vida, configurando deslocamento econômico, devendo ser considerado atingido todo aquele que tem seus modos de vida alterados por esses empreendimentos hidrelétricos.
BIBLIOGRAFIA
SILVA, Luciane Lima Costa e. "O Setor Elétrico Brasileiro e os Impactos Sociais de Hidrelétricas: o Caso dos Atingidos por Barragens". Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.
ROTHMAN, Franklin Daniel. (2008) Questões Nacionais nos Conflitos Socioambientais, na Construção de Barragens. In: ROTHMAN, Franklin Daniel. (Org.). Vidas Alagadas - conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. 1 ed. Viçosa: UFV, 19-32.
VAINER, C. B. (2007) Recursos Hidráulicos: questões sociais e ambientais. Estudos Avançados, v. 21, p. 119-138. (mimeo)
VAINER, C. B. Águas para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. (Org.). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 185-216, 2004.
VAINER, C. B. (2008) Conceito de "Atingido": uma revisão do debate. In: ROTHMAN, Franklin Daniel. (Org.). Vidas Alagadas - conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. 1 ed. Viçosa: UFV, p. 39-63.
VAINER, C. B.; VIEIRA, F. B.; PINHEIRO, D. C.. (2001) Há que barrar as barragens. Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, v. 23, n. maio/junho, p. 14-17.
Eletrobrás - II PDMA (1990) Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico Vol. II pp. 30-45
Eletrobrás – Manual de Estudos de Impacto Ambiental (2002)
Eletrobrás – Referencial para Orçamento das Questões Sócio Ambientais (1994)
WCD (2000) DAMS and DEVELOPMENT: A NEW FRAMEWORK FOR DECISION-MAKING. The Report of the World Commission on Dams / Earthscan Publications Ltd, London and Sterling, VA
Fonte: A autora /Portal do Meio Ambiente - REBIA/Jornalista e Escritor Vilmar Berna
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Com a experiência adquirida ao longo do tempo a Eletrobrás se voltou às questões sociais e ambientais e buscou estudar mais a fundo os impactos negativos, que as hidrelétricas causavam para as populações locais que as recebiam.
Dividido em três capítulos, Introdução, Desenvolvimento e Conclusão, esse texto se propõe a descrever de forma breve o que se entende por “Atingidos por Barragens”.
2) Desenvolvimento
É comum num primeiro momento achar que se trata do deslocamento das pessoas na área do reservatório. Na verdade, obras de engenharia dessa magnitude têm reflexos muitos mais extensos que o seu local de instalação e os efeitos negativos um alcance bem maior do que simplesmente a área do reservatório.
“a noção de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se, legitimação de direitos e de seus detentores” “...estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legítimo – e em alguns casos como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação...” (VAINER, 2008, p. 40).
VAINER identificou o conceito de atingido sob duas ópticas: a Concepção Territorial-Patrimonialista e a Concepção Hídrica.
2.1 Na Concepção Territorial-Patrimonialista, o atingido é unicamente o proprietário de terra. Há o dono da terra de quem o empreendedor comprará, conforme o direito brasileiro, que concede o direto de desapropriação ao empreendedor com base no reconhecimento da utilidade pública do empreendimento. Desse modo, as empresas do setor elétrico se limitavam a indenizar somente os proprietários de terras alagadas.
Não se reconhecia a existência de impactos ambientais e sociais. O único problema era o patrimonial-fundiário. Havia relações de negociação sobre o valor da terra para aqueles que tivessem documento comprobatório de sua posse. Caso o proprietário discordasse do valor proposto o empreendedor poderia depositar 80% do valor em juízo, assumindo imediatamente o domínio da propriedade. Caberia ao desapropriado provar em juízo, que o valor proposto pelo empreendedor não era justo. Levando em conta a falta de assessoramento, os custos e os problemas de lentidão da justiça, bem como a capacidade dos departamentos jurídicos das empresas.
A perspectiva territorial-patrimonialista vê a população como um obstáculo a ser removido, para garantir a viabilidade do empreendimento. O território atingido é tido como a área a ser alagada e a população atingida é constituída somente pelos proprietários de terras da área a ser inundada.
2.2 Na Concepção Hídrica o atingido é o inundado, não somente o proprietário, mas os posseiros, meeiros, ocupantes etc., o que amplia os custos do empreendimento. O atingido passa a ser também o inundado, que fica sujeito a um deslocamento compulsório.
Para VAINER (2008) o Resettlement Handbook da International Financial Corporation – IFC (2001) inova e amplia a compreensão do que seja, ou de quem seja o ‘atingido’ ao utilizar o termo ‘pessoas economicamente deslocadas’:
O objetivo da política de reassentamento involuntário é assegurar que as pessoas que são fisicamente ou economicamente deslocadas, como resultado de um projeto, não fiquem em situação pior, mas melhor do que estavam antes do projeto ser empreendido.
O deslocamento pode ser físico ou econômico. Deslocamento físico é a recolocação física das pessoas resultante da perda de abrigo, recursos produtivos ou de acesso aos recursos produtivos (como terra, água e florestas). O deslocamento econômico resulta de uma ação que interrompe ou elimina o acesso de pessoas aos recursos produtivos sem recolocação física das próprias pessoas (IFC, 2001).
VAINER (2008, p. 46-50) demonstra que entre 1994 e 2001 as agências multilaterais tais como a IFC, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento avançaram no conceito e chegaram ao consenso sobre a noção de atingido: “remete ao conjunto de processos sociais e econômicos deflagrados pelo empreendimento que possam vir a ter efeitos perversos sobre os meios e modos de vida da população.” (VAINER, 2008, p. 50).
O Banco Interamericano (1998), afirmou que a administração de um reassentamento, além de considerar o número de pessoas afetadas, deve também considerar a severidade das conseqüências, pois os impactos não se limitam aos movidos fisicamente, mas podem também afetar a população anfitriã e ter um “efeito de ondulação” em uma área mais ampla como resultado das perdas ou rompimento das atividades econômicas. Para exemplificar melhor, imagine se essas pessoas, que viviam de atividades econômicas a jusante, agora passassem a concorrer com os empregos das cidades que as recebessem. Provavelmente, a cidade anfitriã não estaria preparada para recebê-las e não haveria emprego, escolas e hospitais para acomodar os novos moradores.
O Banco Mundial, governos, empresas e organizações não governamentais constituíram a World Commission on Dams2 (2002), que alargou a definição de deslocamento englobando tanto o físico, quanto o “deslocamento dos modos de vida”. Para a WCD o deslocamento físico, seria propriamente dito o deslocamento de pessoas que vivem na área próxima do reservatório ou do projeto, ou seja, não só pelo enchimento do reservatório, mas também pelas obras de infra-estrutura próximas ao projeto.
A alteração dos ecossistemas e o alagamento de terras afetam os recursos disponíveis nessas áreas, bem como as atividades produtivas. No caso de comunidades dependentes da terra e de recursos naturais, continua a WCD, tem como conseqüência a perda de acesso aos meios tradicionais de subsistência, incluindo-se a pesca, a agricultura, a extração vegetal e a pecuária. Por exemplo, o deslocando de pessoas do seu acesso aos recursos naturais e ambientais essenciais ao seu modo de vida. Desta forma, para a WCD o “atingido” refere-se às populações que enfrentam um outro tipo de deslocamento (2002, p. 102).
A noção da temporalidade dos efeitos da implantação de barragens é também muito importante, em particular para as populações a jusante da barragem, uma vez que esses impactos não são sentidos apenas após o enchimento do reservatório. Os impactos podem ser verificados em momentos diferentes da implantação dos empreendimentos. Há grupos sociais, indivíduos e famílias, que os sofrem desde a divulgação das obras. Há os que são afetados durantes as obras, na fase do enchimento e da operação do reservatório, ou seja, ao longo do projeto diferentes atores sociais são impactados. Segundo Cortés (2008), desde o início das obras os rumores geram os primeiros impactos já que produzem incertezas na população, que se questiona se pode continuar sua vida normal: período de semeadura, investimentos, aquisições, entrada nas escolas, etc.
Em meados da década de 1980, segundo VAINER (2008, p. 55), o Setor Elétrico Brasileiro começou a ser questionado na esfera de suas concepções, estratégias e práticas relativas ao equacionamento e tratamento das populações das áreas de implantação de seus empreendimentos. Na literatura nacional e internacional, e na própria legislação ambiental emergente, a resistência das populações foi um dos principais motivos para que o setor elétrico buscasse mais conhecimento sobre o assunto e começasse a revisar procedimentos com o objetivo de minimizar potenciais conflitos.
A Eletrobrás liderou esse processo, primeiramente atentando para os verdadeiros impactos sociais e ambientais provocados por hidrelétricas, depois ampliando seu conceito de “atingido” para além daquele deslocado por conta do reservatório, incluindo as mudanças sociais, culturais, econômicas e territoriais.
No Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico (1990) a Eletrobrás expõe de forma clara e objetiva sua preocupação com os problemas social e ambiental na implantação de hidrelétricas e apontou diretrizes gerais a serem empregadas por todo o setor elétrico no planejamento e gerenciamento sócio-ambiental, respeitando as diferenças regionais, conforme indicado a seguir:
São expressivas as diferenças, não só entre as realidades regionais em que as empresas atuam, como também entre os quadros de recursos técnicos e financeiros com que contam. Portanto, o PDMA prioriza a formulação de um conjunto de diretrizes setoriais, que traduzam uma postura geral e que possam orientar a definição de diretrizes estratégicas ou programáticas, a serem detalhadas, por parte de cada empresa concessionária, para sua área de atuação. (II PDMA, 1990, p.16)
O remanejamento de contingentes populacionais em áreas onde são implantados empreendimentos do Setor Elétrico, em especial nos casos decorrentes da formação de reservatórios, constitui um ‘processo complexo de mudança social’. Implica, além da movimentação de população, em alterações na organização cultural, social, econômica e territorial da área onde o mesmo ocorre.
É consenso geral que o Setor Elétrico - a par de um objetivo imediato de liberar áreas para implantação de empreendimentos, de acordo com os dispositivos jurídico-legais pertinentes - tem a responsabilidade3 de ressarcir danos causados a todos quantos forem afetados por seus empreendimentos. O cumprimento desta responsabilidade, no entanto, ainda se dá de forma diferenciada entre as concessionárias e até por empreendimento de uma mesma concessionária, no que diz respeito ao tratamento das várias categorias sociais afetadas, sejam elas assemelhadas entre si ou variadas.
Diante da magnitude dos deslocamentos populacionais estimados em função do plano de expansão do Setor, destaca-se a necessidade de um entendimento conceitual unificado e de procedimentos daí decorrentes, em busca de um tratamento isonômico às categoriais sociais afetadas. Em especial, pressupõe-se que a negociação será a base do relacionamento do Setor Elétrico com a sociedade e, particularmente, com os grupos envolvidos.
Nos últimos anos, vem crescendo a importância das ações relativas à reorganização do espaço regional no planejamento dos empreendimentos elétricos, incluindo, além da aquisição de áreas para assentamentos populacionais, a relocação de elementos de infra-estrutura e de equipamentos de apoio à população e às atividades econômicas. Um dos principais problemas que as concessionárias enfrentam para viabilizar estes programas é a ausência de estimativas orçamentárias adequadas para estes itens e de um fluxo de recursos compatível com o atendimento dos processos sociais deflagrados e com o cumprimento de acordos firmados com a população.
O gerenciamento do remanejamento, enfocado na sua complexidade sócio-ambiental, pressupõe, portanto ajustes em diversas rotinas e procedimentos internos por parte das empresas do Setor, com possíveis repercussões na sua organização interna, de forma a permitir a estruturação de um processo coordenado da ação dos departamentos afetos aos vários aspectos da questão. (II PDMA, 1990, p.38-39 - grifo meu).
Mesmo tendo avançado na formulação do problema, reconhecendo a sua gravidade, o momento econômico que o SEB passava era muito grave. A dificuldade de financiamento do setor não permitia o cumprimento dos acordos com os atingidos, destacando dentre outros, o fim do Imposto Único de Energia Elétrica – IUEE. Fica claro que embora a Eletrobrás, principal player do setor elétrico, estivesse convencida – seja por pressões internacionais ou dos movimentos organizados – das questões sociais postas e da necessidade de solucioná-las, a crise econômica nacional e a falta de financiamento para o setor a impediram de por em prática suas conclusões, como observado na citação seguinte:
“...principais problemas que as concessionárias enfrentam para viabilizar estes programas é a ausência de estimativas orçamentárias adequadas para estes itens e de um fluxo de recursos compatível com o atendimento dos processos sociais deflagrados e com o cumprimento de acordos firmados com a população” (ELETROBRÁS, II PDMA 1990 p. 39).
As idéias e propostas formuladas pela Eletrobrás não se concretizaram e o tratamento aos atingidos piorou, porque alguns anos após alcançar tal compreensão o marco institucional do SEB foi alterado de forma substancial, iniciando-se um processo de privatização e de redução significativa dos investimentos em novas usinas. No novo modelo, as negociações passaram a ser com os empreendedores privados4. Pesquisas feitas com os atingidos no país demonstraram, que para as populações atingidas o progresso nunca chegou, conforme assinalado por Rothman (2002)5. Seria preciso rever os marcos regulatórios ambientais e do setor de energia. O tratamento das questões sociais vinha sendo direcionado pela Eletrobrás, num ambiente de investimento público. A partir do momento que o setor é privatizado, nos anos 90, os novos empreendedores não têm obrigações definidas pela regulação e legislação a seguir.
A legislação ambiental não considera as questões sociais e a partir do momento em que a ANEEL aprova a concessão, e concede a declaração de utilidade pública, não há na legislação indicação de sua responsabilidade específica sobre a matéria em questão. Assim como não há também, por parte do IBAMA, a responsabilidade de assessorar as populações atingidas. Sendo este órgão fiscalizador das condicionantes das licenças, atua somente quando os programas de compensação já foram executados.
3) Conclusão
Conforme afirmado pela Eletrobrás trata-se de um ‘processo complexo de mudança social’, não se tratando apenas do deslocamento das pessoas na área do reservatório. Também para o Banco interamericano “os impactos não se limitam aos movidos fisicamente, mas podem também afetar a população anfitriã e ter um “efeito de ondulação” em uma área mais ampla como resultado das perdas ou rompimento das atividades econômicas.”
Para o IFC (2001) o objetivo da política de reassentamento involuntário é assegurar que as pessoas que são fisicamente ou economicamente deslocadas, como resultado de um projeto, não fiquem em situação pior, mas melhor do que estavam antes do projeto ser empreendido.
Sabendo-se que o deslocamento pode ser físico ou econômico; (i) deslocamento físico é a recolocação física das pessoas resultante da perda de abrigo, recursos produtivos ou de acesso aos recursos produtivos (como terra, água e florestas); (ii) deslocamento econômico resulta de uma ação que interrompe ou elimina o acesso de pessoas aos recursos produtivos sem a recolocação física das próprias pessoas (IFC, 2001).
Para a WCD o deslocamento pode ser tanto físico, quanto o “deslocamento dos modos de vida”
Desta forma, percebe-se que esses empreendimentos causam além do deslocamento físico o deslocamento dos modos de vida, configurando deslocamento econômico, devendo ser considerado atingido todo aquele que tem seus modos de vida alterados por esses empreendimentos hidrelétricos.
BIBLIOGRAFIA
SILVA, Luciane Lima Costa e. "O Setor Elétrico Brasileiro e os Impactos Sociais de Hidrelétricas: o Caso dos Atingidos por Barragens". Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.
ROTHMAN, Franklin Daniel. (2008) Questões Nacionais nos Conflitos Socioambientais, na Construção de Barragens. In: ROTHMAN, Franklin Daniel. (Org.). Vidas Alagadas - conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. 1 ed. Viçosa: UFV, 19-32.
VAINER, C. B. (2007) Recursos Hidráulicos: questões sociais e ambientais. Estudos Avançados, v. 21, p. 119-138. (mimeo)
VAINER, C. B. Águas para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. (Org.). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 185-216, 2004.
VAINER, C. B. (2008) Conceito de "Atingido": uma revisão do debate. In: ROTHMAN, Franklin Daniel. (Org.). Vidas Alagadas - conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. 1 ed. Viçosa: UFV, p. 39-63.
VAINER, C. B.; VIEIRA, F. B.; PINHEIRO, D. C.. (2001) Há que barrar as barragens. Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, v. 23, n. maio/junho, p. 14-17.
Eletrobrás - II PDMA (1990) Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico Vol. II pp. 30-45
Eletrobrás – Manual de Estudos de Impacto Ambiental (2002)
Eletrobrás – Referencial para Orçamento das Questões Sócio Ambientais (1994)
WCD (2000) DAMS and DEVELOPMENT: A NEW FRAMEWORK FOR DECISION-MAKING. The Report of the World Commission on Dams / Earthscan Publications Ltd, London and Sterling, VA
1 Especialista em Políticas Públicas pelo IE/UFRJ. 2 WCD Relatório Final, 2002. 3 Note o termo utilizado: responsabilidade. 4 Um novo problema: o empreendedor recebe o direito de expropriação e sem legislação corremos o risco de voltar às concepções territoriais-patrimonialistas. 5 ROTHMAN, Franklin Daniel. Política Ambiental e Lutas de Resistências a Barragens em Minas Gerais: um estudo de caso. Raízes, Campina Grande, vol. 21, nº 01, p. 45-52, jan./jun. 2002 |
Fonte: A autora /Portal do Meio Ambiente - REBIA/Jornalista e Escritor Vilmar Berna
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