“Nós nunca impedimos o desenvolvimento sustentável do homem branco, mas não aceitamos que o governo toma uma decisão de tamanha irresponsabilidade e que trará conseqüências irreversíveis para esta região e nosso povos, desrespeitando profundamente os habitantes ancestrais deste rio e o modelo de desenvolvimento que defendemos” – Carta dos povos indígenas ao presidente Lula contra a construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte.
Belo Monte foi projetada pela primeira vez pelos militares em 1975 no âmbito dos grandes projetos de ocupação da Amazônia. Em 1989, o projeto foi retomado com o nome de usina Kararaô, mas foi abortado pela resistência dos povos indígenas. Há um episódio que marcou simbolicamente a suspensão do projeto. Durante um encontro realizado em Altamira entre os povos índígenas com a Eletronorte para discutir a barragem, a indígena kayapó Tuíra encostou a lâmina de um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes – hoje presidente da Eletrobrás –, num gesto de advertência contra o então projeto do governo de inundar 1,7 milhão de hectares com a construção de cinco barragens no Xingu. A foto correu mundo e a pressão internacional fez com que o Banco Mundial desistisse do empréstimo.
Tudo é superlativo na obra. Belo Monte é um gigante na selva. Ninguém sabe ao certo o custo da obra. Orçada em R$ 20 bilhões pelo governo e R$ 30 bilhões por empresários, a previsão é que a construção da usina mobilize 100 mil pessoas, incluídos os 18,7 mil trabalhadores empregados nas obras, 23 mil nas atividades que orbitam o empreendimento e um contingente de 55 mil pessoas em busca do “novo Eldorado”. Para os críticos, a conta está subestimada e avaliam que a obra mobilizará o dobro, 200 mil pessoas. Apenas a construção dos canais de desvio do rio, necessários para controlar a vazão do Xingu, vão revolver mais terra do que a obra do Canal do Panamá – serão escavadas toneladas de terras e rochas para formar dois canais com 12 quilômetros de cumprimento e 20 metros de profundidade.
“A região da Volta Grande do Xingu ficará praticamente seca com a construção da usina. A exemplo do que aconteceu com a cachoeira de Sete Quedas na construção da usina de Itaipu, também Belo Monte destruirá ou modificará cem quilômetros de uma sucessão de cachoeiras, corredeiras, canais naturais, e, além do enorme, trágico, irresponsável e irreversível desastre ambiental, a população que ficará na região não terá água suficiente para suas necessidades.”, afirma Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, sobre a construção da obra.
Belo Monte é realmente necessária? O governo diz que sim, o movimento social contesta. Na avaliação dos movimentos contrários a obra, a mesma gerará pouca energia e produzirá muitos danos. Segundo especialistas a grande oscilação entre cheias e secas do rio Xingu vai transformar a hidrelétrica de Belo Monte numa imensa usina “vaga-lume”. Análises ainda dão conta que a hidrelétrica foi concebida para atender os grandes consumidores de energia.
O governo, por sua vez, afirma que a hidrelétrica é fundamental para garantir a oferta de energia para a expansão da economia brasileira. O último apagão acabou reforçando ainda mais a tese do governo, ou seja, Belo Monte é necessária para suprir a voracidade de uma sociedade produtivista e consumista que demanda muita energia.
Belo Monte pensada sob a perspectiva da lógica imediata e pragmática encontra argumentos justificáveis e favoráveis; pensada, entretanto, sob a perspectiva da crise ecológica a obra se torna questionável. No contexto do debate sobre a pertinência ou não de Belo Monte, o princípio da “ecologia da ação” de Edgar Morin é um bom critério de avaliação. Diz ele: “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com freqüência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”.
O que Morin quer dizer é que toda ação implica em efeitos nem sempre controláveis e que mesmo uma ação realizada com o melhor dos propósitos, pode fugir ao controle e se voltar contra o objetivo inicial. Nesse sentido, Belo Monte desejável nesse momento pode ser lamentada mais tarde.
O principio da “ecologia da ação” ganha ainda mais importância quando se tem presente a magnitude da crise ecológica, ou seja, o fato de que de que vivemos em um planeta finito e com recursos naturais igualmente finitos e que o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos – a equação não fecha.
A novidade agora, que não se colocava com força na conjuntura da década de 80, é que qualquer projeto radicalmente alternativo de sociedade não pode desconsiderar a questão ecológica. A questão ambiental revela-se um tema cada vez mais central. Emerge com intensidade crescente a consciência de que há uma relação vital entre a saga da vida, em especial, da vida humana na Terra e a própria sobrevivência do Planeta.
Povos Indígenas ouvem o grito da Terra
Quem mais tem compreendido esse “grito da Terra” são os povos indígenas. No caso de Belo Monte, entre as forças que mais se destacam na resistência à hidrelétrica, estão os povos indígenas. Em toda a América Latina, são eles que se levantam na defesa dos recursos naturais. Os indígenas são o portadores de uma outra cosmovisão, isto é, de uma outra compreensão de desenvolvimento e de relação com a natureza. A resistência indígena manifesta um radical questionamento a visão economicista, utilitarista e objetivista –base do modelo ocidental de desenvolvimento.
A emergência do movimento indígena coincide com o enfraquecimento do movimento social tradicional (operário, sindical – de corte classista), mais umbilicalmente identificado com a lógica do modelo industrial de desenvolvimento. A pauta ambiental ainda engatinha no movimento operário. A categoria de vanguarda no mundo do trabalho, os metalúrgicos, ainda acha, em sua maior parte, que o que vale é a quantidade de carros produzidos para assim ampliar o reajuste salarial concedido pelas montadoras.
A esquerda tradicional, preso à lógica da sociedade industrial, é incapaz de perceber a importância da luta indígena e até mesmo considera que os povos indígenas são um estorvo ao desenvolvimento como foi a posição do PCdoB em relação à Reserva Raposa Serra do Sol.
É o modelo de sociedade tributário da sociedade industrial, caro à esquerda, que o movimento indígena questiona. Na análise de Dom Erwin Kräutler, aliado da luta indígena na luta contra Belo Monte, “existem dois modelos de desenvolvimento, um a favor das grandes empresas e do agronegócio, exigindo capital e a concentração de terras para o cultivo de monoculturas. Este modelo – diz o bispo – considera a terra como mercadoria, destinada a compra ou venda, e explorável até a exaustão. Em seu conjunto, é orientado para a produção e exportação, concentrador de renda, visando lucros privados e resultados imediatos e muito agressivo ao meio-ambiente”.
O outro modelo na perspectiva indígena, destaca dom Erwin, “vê na terra o lar que Deus criou em que vivem os povos e convivem respeitosamente com a natureza, a flora e a fauna. A terra exerce uma função materna. Este modelo de desenvolvimento é orientado para a Vida, a paz, a preservação ambiental e o bem-estar da população local, dos pequenos agricultores, das comunidades tradicionais, dos povos indígenas. São dois projetos que estão em confronto: um a favor da terra para a Vida, o outro a favor da terra para o negócio”.
Segundo ele, “só os índios, hoje, se preocupam com o seu futuro. Eles perguntam: o que será dos nossos filhos? O branco parece que está olhando só o presente e faz de conta que depois de nossa geração virá o dilúvio. Isso é um absurdo”, afirma d. Erwin Krautler, acerca da visão pragmática e da volúpia exploratória da lógica do capital sobre as terras indígenas.
Para o indigenista Antonio Brand, “as populações indígenas concebem conceitos distintos de natureza, sendo que suas cosmologias explicitam como homens, plantas e animais interagem e se articulam sinalizando para a interdependência entre organização econômica, social e religiosa. Para essas populações, a esfera da economia e das relações sociais e religiosas são inseparáveis. Por isso, a questão de fundo dos territórios e a luta pela preservação da biodiversidade é tão importante para o futuro desses povos”.
A Era do protagonismo indígena
Os indígenas não são mais atores coadjuvantes, pelo contrário são hoje ao lado dos ribeirinhos, povos das florestas, agricultores empobrecidos, a “vanguarda” da luta social no continente latino-americano. “Presenciamos agora a ressurreição do índio”, afirma o indígena Eleazar López Hernández porque são eles que anunciam que “não basta salvar a nós, indígenas; é preciso salvar toda a humanidade e toda a criação”.
‘Estamos entrando na era do protagonismo indígena”, afirma o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira. Segundo ele, “assim como ocorre entre os afrodescendentes, a autoestima entre os índios é cada vez mais elevada. Uma das consequências disso é que estamos entrando na era do protagonismo indígena. Hoje eles têm candidatos a prefeito e a vereador nas áreas em que vivem. Em 2010 disputarão cadeiras de deputados estaduais e federais. Também ocupam cargos importantes na administração pública, enviam os filhos para as universidades e tornam suas organizações cada vez mais fortes. Com o aumento da autoestima, os filhos também valorizam mais as tradições culturais – usando para isso tecnologias digitais, como computadores, câmeras, vídeos, filmes. Num processo inverso ao que ocorria no passado, quando os índios tinham vergonha de assumir que eram índios, é cada vez maior o número de comunidades que assumem. O fenômeno da etnicidade ganhou um impulso muito grande no Brasil”.
O protagonismo indígena se coloca em marcha como a principal força social contrária a construção da obra hidrelétrica de Belo Monte. Os povos indígenas Mebengôkre (Kayapó), Xavante, Yudjá (Juruna), Kawaiwete (kaiabi), KisêdjÇe (Suiá), Kamaiurá, Kuikuro, Ikpeng, Panará, Nafukua, Tapayuna, Yawalapiti, Waurá, Mehinaku e Trumai entregaram recentemente uma carta ao presidente Lula na qual exigem o cancelamento definitivo da obra e ao mesmo tempo advertem: “Alertamos que haverá uma ação guerreira por parte dos povos indígenas do Xingu. A vida dos operários e indígenas estará em risco e o governo brasileiro será responsabilizado”.
Nessa perspectiva é simbólico o reencontro entre Raoni e Sting. O motivo do reencontro é a construção da usina de Belo Monte – o mesmo que os uniu há 20 anos atrás. O encontro acontece em outra conjuntura. Há vintes anos atrás a temática ambiental estava fora da agenda, hoje, está no centro. No encontro coube a Sting fazer a amarração entre Belo Monte e Copenhague. “Há 20 anos, quando vim pela primeira vez ao Xingu, tive uma intuição que a floresta era importante para o mundo. Mas era só uma intuição. Vinte anos depois temos a informação científica que dá base a esta ideia.”
Um jornalista colocou o fato que o Brasil precisa de energia. “Não sou perito neste assunto, só acho que todos os lados têm que ser ouvidos”, disse Sting e acrescentou, “o Brasil precisa de energia, mas talvez não precise de Belo Monte”. “Há 20 anos eu conheci ‘Patemá’ e pedi ajuda a ele”, disse Raoni Txucarramãe – ‘Patemá’, como ele carinhosamente chama Sting, quer dizer ‘fígado de tamanduá’, em caiapó. “Estou preocupado porque o governo quer de novo fazer a barragem de Belo Monte”, continuou o líder indígena, na tradução do sobrinho Megaron Txucarramãe. Raoni prosseguiu: “Eu não tô gostando. Quero viver em paz, quero que meus netos vivam em paz. Não quero barragem no rio Xingu, espalha aí”, sugeriu.
Foi Megaron quem esclareceu: “Quando o governo planejou Belo Monte, não conversou com os índios. O governo tem que escutar os índios, explicar o que está acontecendo. “E antes que viesse a pergunta sobre as audiências públicas que o Ibama fez na região do projeto, emendou: “Índio não entende o que é audiência pública. Pensa que é para ir lá para brigar.”
“Deve haver uma razão econômica para fazer a barragem, mas também deve haver motivos ambientais que mostrem que talvez esta não é uma boa ideia”, pontuou o Sting. “O desafio é criar um modelo econômico que seja bom para todos, para os índios e também para este pessoal daqui”, disse Sting, apontando a região onde ficam as fazendas.
Conjuntura da Semana. Uma leitura das ‘Notícias do Dia’ do IHU de 18 a 24 de novembro de 2009
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU. A presente análise toma como referência as “Notícias” publicadas de 18 a 24 de novembro de 2009. A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
(Ecodebate, 30/11/2009) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
INSTITUTO SOS RIOS DO BRASIL
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