Moradores tentam encontrar sobreviventes no Morro do Bumba, em Niteroi.
Os abandonados nos desastres
Na sociologia, considera-se desastre um acontecimento social trágico no qual se mesclam dimensões objetivas e subjetivas de perdas e danos, as quais deveriam, a rigor, suscitar não apenas medidas de reconstrução – do sistema de objetos ao derredor e do mundo interior do sujeito afetado –, mas novas práticas sociais, calcadas num aprendizado em torno do drama coletivo vivido. No entanto, o contexto brasileiro de ocorrência dos desastres nos traz uma inquietante sensação de déjà vu: os eventos ameaçantes são os mesmos, como as chuvas intensas; os grupos vulneráveis, idem, preferencialmente formados por setores empobrecidos da sociedade; as épocas de ocorrência e as localidades impactadas são notavelmente semelhantes, morros e fundos de vale.
Se as tragédias passam a ser rotineiras, imiscuindo sistematicamente a destruição do meio envolvente e um amplo sofrimento social, muitas indagações daí emergem, desde as que reportam as dimensões sociopolíticas que embasam essa adversa regularidade as que perpassam os aspectos microssociais, passando por aquelas que situam os acontecimentos numa perspectiva civilizacional. Amiúde os meios de comunicação interpelam os ‘desastrólogos’ da comunidade científica em busca de explicações palatáveis para interpretar os eventos em termos pontuais ou para demandar interpretações originais, quando nem em uma ou noutra repousam a compreensão que precisamos ter para superar tal estado de coisas.
Repetições de tragédias apontam para a manutenção de padrões sociopáticos de relacionamentos transescalares no Brasil, os quais se espelham numa territorialidade doentia; o que há para dizer conceitualmente sobre isso, grandes mestres, como Milton Santos e Florestan Fernandes, já o disseram. Portanto, não é de respostas adequadas que a sociedade brasileira carece, mas de vontade pública de aplicá-las, contendo pois o princípio de morte subjacente às práticas coletivas de produção contínua de dor auto-infligida bem como infligida preferencialmente aos mais fracos, e que tomam o nome de ‘fatalidade’ sob as águas pluviais velozes e a densa lama, ambas carreando os projetos de uma vida melhor e a própria vida.
No que concerne às responsabilidades públicas, uma mudança de enredo implicaria fundamentalmente em agir para o arejamento do imaginário social, não se prestando a confundir os desastres com falta de obras civis ou apenas tendo tais obras como o foco do refazimento do tecido sócio-espacial danificado ou destruído. Obras são negócios e há uma dimensão extra-econômica que precede. Antes dessas, os desastres deveriam ser enfrentados a partir da gestação de genuínos espaços participativos, recompondo as forças sociais para que, por meio de vários conhecimentos e saberes, se obtivesse novos consensos no enfrentamento dos fatores de ameaça, o que implicaria em um bocado de renúncia do conjunto de interesses que organizam hegemonicamente a base territorial no campo e na cidade.
Desafortunadamente, como os setores afluentes, sob a lógica da acumulação, são levados a presentificar suas relações com o mundo, não há indícios de que abrirão mão de seus ganhos e espaços conquistados, tanto mais de sua influência sobre o aparelho do Estado, empurrando os segmentos subalternos para a inseguridade e desproteção social, espacial, física e emocional. Os desastres expressam a conformação vampiresca de nossa estrutura de classes, na qual a perspectiva (ilusória, para a maioria) de mobilidade ascendente incita a egolatria dos sujeitos que dominam e devastam terra e água, utilizando-se instrumentalmente das forças do Estado para reforçar posições de prestígio e preferência ante milhões de miseráveis jogados para o escanteio da vida digna e da cidadania.
A insistência da opinião pública em denominar como ‘naturais’ ou ‘climáticos’ o desastre tende a obscurecer a natureza sociopolítica do problema que freqüentemente vem nos bater às portas. Subtrai-se, com tal manobra discursiva, os cientistas sociais do debate, apartando-os da possibilidade explicativa dos fenômenos sociais recorrentes dos desastres; assim, incrementam-se argumentos pautados estritamente em obras e demais aparatos sociotécnicos que reforçam o viés elitista e excludente em torno de soluções. As quais, por evidente, mostrar-se-ão débeis em recortes temporais cada vez menores. Afetados são, primeiramente, os empobrecidos nas bordas do território, mas os efeitos deletérios aos poucos escapam do viés de classe e se alastram, surtindo restrições aos meios e modos de vida dos detratores da pauta de justiça social.
Os governantes não deveriam mais olvidar a necessidade de transcender o contexto de pura comoção frente à devastação de primeira hora e usar de suas legítimas atribuições para deflagrar o debate em torno de um novo pacto social referente o uso do solo. A iniqüidade distributiva da terra é a crise persistente por detrás das nuvens cinzentas e não são as obras civis, cujos recursos públicos escorrem para gigantes empreiteiras, que a equacionarão adequadamente. O anestesiamento do gestor público, que age burocraticamente diante o sofrimento coletivo – como se tratasse apenas de papéis a preencher para contratações de obras, de cadastros para auxílio-moradia (num contexto imobiliário em que a moradia segura para o pobre inexiste), de distribuição de cestas básicas e colchões – adia perigosamente o processo de enfrentamento de nossas mazelas estruturais. Tal procrastinação cobra seu preço ao recrudescer a magnitude e intensidade dos desastres daqui em diante, numa espiral de devastação da qual não se poderemos mais fugir.
A opacidade em torno da persistência e ampliação dos desastres tem sido forjada no foco midiático em casos, fazendo-nos pensar que é “lá”, “com o outro” e “ontem” as variáveis a que o episódio trágico se refere. Tais estratégias surtem o ambíguo efeito de chamar a atenção para a notícia, mas provocar o distanciamento do espectador frente às desventuras alheias. A narrativa naturalizante em torno do “dia do desastre” faz-nos crer que, quando a chuva intensa passa, todo o mal já se foi com ela. O que tinha que desabar, já desabou. Ocorre que para quem perde seus familiares, a moradia, seus meios de trabalho (por vezes, tudo isso simultaneamente), o desastre está apenas começando quando as chuvas caem.
O seu mundo interior, bem como suas relações sociais, desaba a cada dia. Para os empobrecidos, o desastre já estava ali, na luta inglória pela sobrevivência, apenas esperando um momento para eclodir com força. As chuvas não causam o desastre: o revela, na falta de amparo prévio e posterior por parte do Estado. Milhares de famílias desabrigadas e desalojadas país afora vivenciam o desastre meses ou anos após as chuvas que lhes carreou a moradia. Já não são mais, tais afetados, notícia de jornal. Abrigos provisórios são desmanchados pelo Estado sem que uma solução habitacional tenha sido encontrada para as famílias conviventes; cada família fragmenta-se para que seus membros consigam ser acolhidos por sua rede primária de relações (parentes, amigos, vizinhos), solidariedade que mina com o tempo, devido as razões próprias da esfera privada; a família desfaz-se, por fim. Cada qual, sobrevivente, buscando um rumo alternativo, muitas vezes em situação de rua. Já estão a sós, sob as chuvas, sem um grupo e um lugar para referenciar sua trajetória, sem moradia para reivindicar, sem um projeto existencial significativo para seguir adiante. Poderemos desligar a TV, virar a página do jornal e, mesmo assim, persistiremos como responsáveis pelo vil destino dos abandonados nos desastres.
Norma Valencio
[i] Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres –NEPED, da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. E-mail: normaf@terra.com.br
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