Agência Envolverde - 13/01/2009
Por Sebastián Lacunza, da IPS
Buenos Aires, 13/01/2009 – Mais de três anos depois que vizinhos da cidade Argentina de Gualenguaychú começaram a se mobilizar contra a instalação de uma fábrica de celulose na margem uruguaia de um rio próximo, o governo argentino empreende uma decidida ofensiva para desativar o protesto. Porta-vozes de primeira linha do governo de Cristina Fernández chegaram, inclusive, a desconsiderar, como nunca antes, a reclamação de fundo dos ativistas que mantêm bloqueadas há dois anos a mais usada das três pontes sobre o rio Uruguai, que serve de fronteira entre os dois países. A controvérsia deteriorou a tradicional boa relação bilateral.
No entanto, dirigentes da Assembleia Ambiental de Gualenguaychú denunciam um “bloqueio de informação” por parte da grande mídia Argentina e uma ação “demagógica” do governo de Fernández. Reclamando por uma temida contaminação, até agora não detectada apesar de a gigantesca fábrica da empresa finlandesa Botnia estar em atividade desde novembro de 207, os membros dessa assembleia ratificaram esta semana a longa interrupção do trânsito de veículos na ponte General San Martín.
A processadora de pasta para fabricar papel fica nas proximidades de Fray Bentos, capital do departamento uruguaio de Rio Negro, historicamente irmã de Gualenguaychú, na província de Entre Rios e distante 22 quilômetros do rio limítrofe. Embora reconheçam contar hoje com menos força para o protesto do que no começo, os ativistas insistem que sua posição é “um resguardo” diante da política de fatos consumados que, segundo dizem, apresenta o governo uruguaio de Tabaré Vázquez a favor de uma indústria que ameaçaria o projeto turístico local, em que boa parte de sua comunidade está envolvida.
No começo do protesto, e quanto a fábrica ainda era um projeto, a Assembléia conseguiu mobilizar uma quantidade de pessoas do lugar e de regiões próximas equivalente a 60% dos 80 mil habitantes de Gualenguaychú. A confirmação dos bloqueios foi desqualificada pelos principais meios do oficialismo argentino. O chefe do gabinete ministerial, Sergio Massa, considerou esse tipo de medida “antidemocrática”. Com Massa concordou o ministro da Justiça, Aníbal Fernández, que já era um dos principais porta-vozes de Nestor Kirchner, que antecedeu sua mulher. Fernández, na presidência da Argentina de 2003 a 2007. Massa declarou que o Poder Executivo “nunca esteve de acordo com os bloqueios” de vias.
Quem também considerou que a presença da fabrica finlandesa é “saudável para a região” foi o dirigente social Luis D’Elía, líder de um dos grandes movimentos de piqueteiros. D’Elía é apontado por analistas e jornalistas como um porta-voz das posições mais radicais do kirchnerismo, o setor de centro-esquerda governante do heterogêneo Partido Justicialista (Peronista).
Por último, o governador de Entre Rios, o também peronista Sergio Urribarri, disse que seria iminente a liberação das vias para o Uruguai, porque “o bloqueio está esgotado”, acrescentando argumentos ao que havia afirmado há duas semanas de que “Botnia não contamina”. Luis Leissa, ex-prefeito de Gualenguaychú e advogado da Assembleia, disse à IPS que os governos nacional e provincial “estão com uma clara vontade de desativar o bloqueio e deixar que o funcionamento da Botnia seja um fato consumado. Na realidade, mostram uma enorme passividade e trabalham por reação e demagogia”.
Ponte refém
A interrupção total da passagem terrestre mais importante entre os dois países começou em novembro de 2006, afetando turistas e trabalhadores. O principal prejudicado é o Uruguai, cujas praias são destino de centenas de milhares de argentinos durante o verão. O ministro de Turismo e Esporte, do Uruguai, Héctor Lescano, disse que sete em cada 10 visitantes que seu país recebeu este mês foram argentinos.
A fábrica da Botnia produz 2.900 toneladas de pasta de celulose, volume alcançado em tempo recorde, o que a converteu na estrela dessa companhia global. Em sua construção chegaram a trabalhar 5.300 homens, causando um auge econômico quase sem precedentes em Fray Bentos. Já em atividade, emprega apenas 300 pessoas, a maioria técnicos especializados, 10% deles originários da Finlândia. Mas, dirigentes locais afirmam que foram criados quase quatro mil postos de trabalho relacionados com a atividade da fábrica. Segundo seus registros, os estudos de impacto sobre o rio e o ar estão “muito abaixo do comprometido diante das autoridades uruguaias e dos padrões exigidos na União Européia”.
Por outro lado, a Assembleia Ambiental de Gualenguaychú prevêem uma “deterioração acumulativa de um rio de alta qualidade como o Uruguai, que se verá concretamente no prazo de sete ou oito anos”. Dizem que já se detecta “moluscos afetados”, informam que a fábrica usa gratuitamente 30 milhões de metros cúbicos de água por ano, 80% dos quais retornam ao rio depois de seu uso industrial. Anualmente, a firma depositará no rio, segundo os ativistas, pelo menos 150 toneladas de resíduos tóxicos. Como no passado, ao bloqueio da ponte General San Martín poderá se somar nos próximos dias outros bloqueios ocasionias na segunda ponte, 104 quilômetros mais ao norte, que une Colón com a cidade uruguaia de Paysandú, e na terceira, que liga Concórdia com Salto.
Diante dessa alternativa, uma pesquisa da empresa Ibarômetro da Argentina indica que 61,4% dos consultados reclamam a liberação das pontes. Mas, nas comunidades afetadas pela ameaça da fábrica o apoio à metodologia do protesto continua sendo majoritário. Produto da mobilização social, sem eu momento o governo do então presidente Kirchner declarou a reclamação como “causa nacional”. Além disso, apresentou um recurso em maio de 2006 no Tribunal Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, por considerar que o Uruguai havia violado o Tratado Bilateral do Rio, assinado em 1975 e que obriga os dois países a não causarem dano unilateral ao ecossistema. O julgamento está em curso e estima-se que a sentença possa sair em 2010. Desde o começo, embora o governo Kirchner não tenha aprovado os bloqueios, pelo menos os tolerou.
O jogo do poder
Silvina Rossi, integrante da Assembléia, produziu um documentário intitulado “História de duas margens”, que apresenta testemunhos de especialistas e supostos prejudicados pela atividade de fabricas de celulose em Fray Bentos, em Valdivia (Chile), Espírito Santo (Brasil), Puerto Esperanaz (Argentina) Pontevedra (Espanha) e da própria Botnia na Finlândia. “Para fazer historia percorremos todas as cidades onde há fábricas. Ficamos chocados com as conseqüências. A globalização pretende que aceitemos resignadamente o lugar que querem nos dar”, disse à IPS.
Rossi comemorou o fato de ter conseguido exibir o filme, com apoio da organização não-governamental Cinemateca Uruguaia, em uma sala central de Montevidéu. Esta empresária garante que existe um bloqueio jornalístico por parte da Botnia tanto no Uruguai quanto na Argentina. “A informação tendenciosa faz parte do pacote de poder. A mídia começou a jogar absolutamente contra o protesto de Gualenguaychú e a partir de determinado ponto começou a distorcer deliberadamente as informações”, afirmou Rossi.
Acrescentou que “Papel imprensa tem sua posição”. Essa firma é a indústria papeleira formada pelos dois principais diários argentinos e o Estado, que possui uma fábrica de celulose também sob mira das organizações ecologistas. “A Botnia representa mudar um modelo de desenvolvimento sustentável por um de pobreza. Querem transformar esta região turística em um pólo industrial”, disse Rossi. Ela argumenta que o desenvolvimento da cidade de Entre Rios se deve ao rio Gualenguaychú, afluente do Uruguai, que tem 100% de seus efluentes tratados, o mais importante do mundo em uma conta de água doce.
O governo argentino faz estudos de impacto ambiental periódicos com apoio das universidades estatais de Luján e La Plata. Mas seus resultados ainda não foram divulgados por uma decisão estratégica com vistas ao julgamento de Haia, segundo seus porta-vozes. Por sua vez, a organização ambientalista Green Cross, criada pelo ex-mandatário soviético Mikhail Gorbachov, divulgou dois estudos que negam que a fábrica tenha contaminado. Estes resultados, no entanto, são desprezados pelos ambientalistas, os quais acrescentam que Marisa Arienza, presidente dessa organização na Argentina, alertou que os informes não atendem uma possível – para eles – contaminação acumulativa.
Sobre as críticas que gera o bloqueio de uma ponte internacional, o ex-prefeito Leissa disse: “Nos acusam de utilizar a via de fato quando, na realidade, quem a utiliza é Tabaré Vázquez”. O advogado afirmou que, além de permitir “de fato” a construção da fábrica, “nos bloqueiam a via judicial para solucionar o conflito”. A referência é a negativa do governo esquerdista uruguaio de entregar documentos solicitados por um tribunal de Entre rios para sustentar uma demanda contra a Botnia pelo suposto crime de tentativa de contaminação. Montevidéu também negou autorização a diretores da empresa para deporem nesse caso.
Vázquez acrescentou que “a solicitação” afeta “os interesses essenciais tanto no econômico vinculado à instalação de empreendimentos comerciais” quanto “em relação aos direitos soberanos do Estado de dispor de seu território, livremente e se coação”. Leissa admitiu que alguns moradores de Gualenguaychú começaram a se movimentar. “Não queremos que a causa ambientalista fique como uma reclamação retórica e formal. Se colocou em alerta muitos setores. Vamos continuar”, destacou. (IPS/Envolverde)
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