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17 de março de 2009

ATÉ AS JÓIAS DA COROA FORAM VENDIDAS PARA RESOLVER A FALTA D' ÁGUA DO NORDESTE

Hoje, aproximadamente 300 mil cisternas garantem água potável

A dura conquista da água

artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)
- 17/03/2009

[EcoDebate] Hoje o Nordeste brasileiro tem uma rede de 70 mil açudes, com uma capacidade para armazenar 36 bilhões de metros cúbicos de água. Entretanto, no tempo de D. Pedro, quando ele decidiu “vender as jóias da Coroa” para resolver o drama das populações por falta de água, essa região não tinha a mínima infraestrutura para armazenar as águas de chuva que se precipitam sobre a região todos os anos.

Em 1909 o governo federal criou o IOCS (Inspetoria de Obras contra as Secas), depois IFOCS (Inspetoria Federal de Obras contra as Secas), finalmente o DENOCS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas). Era a mentalidade de “acabar com a seca”. Durante décadas o DENOCS foi a maior empreiteira da América Latina. A filosofia só iria mudar com Celso Furtado, quando decidiu mudar o foco da questão Nordestina e resolveu investir na industrialização. Era a criação da SUDENE. Mas o grande pensador também iria incorrer no sério equívoco de propor a remoção das populações rurais do Nordeste para o chuvoso Norte.

Pelo sertão, beatos e cangaceiros iriam influenciar a vida dos sertanejos. A questão da água esteve sempre no foco de pessoas como Pe. Ibiapina – cada Casa de Caridade deveria ter uma cisterna no oitão -, assim como em Pe. Cícero. Em muitos momentos eles iriam se encontrar, a exemplo do encontro de Pe. Cícero com Lampião no Juazeiro do Norte, quando o padre concedeu a Virgulino o título de capitão, com a finalidade de perseguir a Coluna Prestes. Lampião pegou as armas do Exército e municiou seu bando. Saiu fortalecido, mas jamais renunciou ao título de capitão.

Lampião reinou por mais de 20 anos. Declarou-se governador do sertão. Só foi morto com aproximadamente 40 anos de idade por um “coiteiro” que envenenou a comida do bando. Quando os corpos degolados foram vistos nas grutas de Angico, Sergipe, foram encontrados também urubus mortos e outros que não podiam voar. Os próprios soldados do Capitão Bezerra admitiram que, quando ele foi ao encalço de Lampião na gruta, já sabia que o bando estaria morto. Aí foi fácil degolá-los e apresentar suas cabeças nas pedras de Delmiro. No ano passado completaram-se 70 anos da morte de Lampião, sem que o fato fosse devidamente debatido.

O Nordeste viu no século passado o crescimento da rede de açudes, a “indústria da seca”, mas nunca conseguiu fazer a democratização da água.

Na década de 80 surge um ator coletivo no Nordeste, articulado na sociedade civil, com a firme disposição de eliminar esse fator de atraso que nos joga para o século XIX. O diagnóstico simples de que aqui é o semi-árido mais chuvoso do planeta, articulado com as práticas ancestrais das comunidades de armazenar água de chuva no chão, com a simples invenção de um pedreiro que fazia piscinas para elite paulistana, resultou na implantação massiva da cisterna de placas.

Hoje, aproximadamente 300 mil cisternas garantem água potável – desde que bem administrada – para 300 mil famílias, ou seja, 1,5 milhão de pessoas. Depois essa mesma sociedade civil propôs o projeto “Uma Terra e Duas Águas”, ainda em incipiente implantação, com a finalidade de garantir água e terra também para produzir. Caminhos simples e baratos que realmente democratizam a água e a terra. Avançamos na água, continuamos estagnados na terra.

Falta agora seguir firme na implementação das adutoras. Toda água estocada do Nordeste na sua malha de açudes pode ser distribuída por adutoras. Falta fazê-las. É o que propõe o Atlas do Nordeste, com 530 obras, alcançando mais de 1.300 municípios, resolvendo o problema básico de 34 milhões de nordestinos que vivem no meio urbano. Uma simples adutora feita no sul do Piauí, região do Parque Nacional da Serra da Capivara, agora abastece onze municípios. É fácil, basta querer.

Infelizmente, ainda nesse governo, prevaleceu mais uma vez a indústria da seca e o novo e agressivo hidronegócio, priorizando uma obra econômica, tão ao gosto das empreiteiras e das oligarquias políticas nordestinas. A transposição, literalmente, patina na lama da água de chuva que encheu pouco mais de 6 quilômetros de terra planagem realizada, 1% dos 700 Km que precisam ser feitos.

A conquista da água no Nordeste pelo povo é uma luta histórica, cruel e difícil. Porém, aos poucos, estamos chegando. A democratização da água pelas adutoras é uma questão de tempo, desde que nossa luta continue.

Roberto Malvezzi (Gogó) é Assessor da Comissão Pastoral da Terra - CPT, colaborador e articulista do EcoDebate.

[Fonte: EcoDebate, 17/03/2009]

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