26/03/2010 - 10h03 A guerra mundial pela água pode ser pacífica Por Enéas Salati* | Entre as substâncias naturais a água é uma das mais simples em sua constituição utilizando apenas duas das 92 espécies atômicas naturais existentes no planeta, sendo formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). No entanto, a sua existência é um fator determinante para o Planeta Terra ser como ele é: apresentando uma vida orgânica através dos seres vivos vegetais e animais incluindo o próprio homem. Tendo em vista que 77% da superfície do Planeta são cobertos por água seria mais correto chamá-lo de Planeta Água ao invés de Planeta Terra.
Das águas do planeta, 97,5% (ou 1, 351 bilhão de km3) são salgadas e apenas 2,5% (cerca de 35 milhões de km3) são doces, das quais menos de um terço está disponível para o uso humano. Grande parte das fontes de água doce, como rios, lagos e represas, esta sendo contaminada, poluída e degradada pela ação predatória do homem. Em todo o mundo, domina uma cultura de desperdício de água, pois ainda se acredita que ela é um recurso natural ilimitado. Esta situação se revela a cada dia mais preocupante uma vez que a sua disponibilidade está cada vez mais sendo modificada na sua quantidade e qualidade pelas atividades antrópicas.
Devido à grande expansão urbana, a industrialização, a agricultura, a pecuária intensiva e ainda à produção de energia elétrica - que estão estreitamente associadas à elevação do nível de vida e ao rápido crescimento populacional - crescentes quantidades de água passaram a ser exigidas. Em 2000, o mundo todo usou duas vezes mais água do que em 1960. E as previsões revelam que este número não parará de crescer. Tais fatores tornam a água o recurso natural mais estratégico para qualquer país do mundo.
Frente aos desafios apresentados, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou a resolução A/RES/47/193 de 22 de fevereiro de 1993, através da qual 22 de março de cada ano seria declarado Dia Mundial das Águas, de acordo com as recomendações da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento contidas no capítulo 18 (sobre recursos hídricos) da Agenda 21. O objetivo é criar um momento de reflexão, análise, conscientização e elaboração de medidas práticas para que a humanidade faça uso sustentável da água disponível no planeta. A cada ano a ONU define um tema destinado à discussão. Para 2010 foi escolhido “Qualidade da Água”.
Mas ainda que a data tenha sido definida, os fatos e números revelam que não há como comemorá-la, ainda. Segundo a Organização das Nações Unidas - ONU, 50% da taxa de doenças e morte nos países em desenvolvimento ocorrem por falta de água ou pela sua contaminação. Em todo o mundo, 2,3 bilhões de pessoas sofrem de doenças disseminadas pelas águas. E mais de 1 bilhão de pessoas não têm acesso fácil a nenhum suprimento seguro de água doce. Muitos dos que têm não possuem nem uma torneira de água em casa.
Mais de dois terços do consumo mundial de água servem para irrigar lavouras e para os animais, e a maior parte é usada para a irrigação em regiões áridas e semi-áridas. A indústria é o segundo maior usuário – 21% do total mundial. Em apenas poucos países altamente industrializados, como EUA, os Países Baixos e a Alemanha, a água é mais consumida pela indústria do que pela agricultura. Em comparação, o volume da água empregado para fins domésticos, incluindo o uso urbano municipal, é relativamente baixo – cerca de 10% do total. Cerca de 30% da água usada nas casas de países desenvolvidos vão para as descargas de vaso sanitário.
Segundo a ONU, em 2000, cerca de 500 milhões de pessoas viviam em países com escassez crônica de água, e outras 2,4 bilhões em países onde o sistema hídrico está ameaçado. Dados do IWMI (International Water Management Institute) mostram que, mantendo-se os níveis atuais de precipitação em 2025, cerca de 1.8 bilhões de pessoas de diversos países deverão viver em absoluta falta de água, o que equivale a mais de 30% da população mundial. E por volta de 2050, estima-se que mais de 4 bilhões de pessoas – quase metade da população mundial – estarão vivendo em países com carência crônica de água.
Embora o número de pessoas servidas por algum tipo de água pura tenha aumentado de mais de 4 bilhões, em 1990, para quase 5 bilhões, em 2000, deve-se levar em conta o aumento populacional: o número de pessoas sem acesso ao suprimento de água pura permaneceu em mais de 1 bilhão. A maior parte dessas pessoas vive na Ásia e na África, onde os serviços rurais estão muito mais defasados em relação aos das áreas urbanas. Mais de um terço da população mundial ainda vive com serviços de saneamento inadequados. O descarte seguro das fezes humanas é um fator básico na luta contra muitas doenças infecciosas, e o esgoto sem tratamento constitui um problema de saúde permanente. Um bom saneamento, fundamental na luta contra doenças, é o ponto de partida para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Mas, engana-se quem acredita que a falta de qualidade das águas e o não tratamento dos dejetos de esgoto são mazelas apenas dos países pobres. Em Nova Délhi, todos os dias, 200 milhões de litros de esgoto sem tratamento são despejados no rio Yamuna. No Canadá, atualmente, 1 trilhão de litros de esgoto sem tratamento são jogados nas águas.
As áreas úmidas ou alagadas estão pouco a pouco sendo destruídas com enormes consequências para muitas espécies de peixes que estão sendo ameaçadas e algumas já extintas e a população de muitos anfíbios já entrou em declínio.
Existem várias alternativas para aumentar a disponibilidade hídrica em diversas regiões. Uma delas é a dessalinização (transformação de água salgada, ou salobra, em doce) que é usada em diversos países, a maioria no Oriente Médio. Mas a quantidade de água do mar transformada em água doce ainda é mínima: responde por apenas 1% do consumo mundial de água, principalmente porque exige uma tecnologia cara e uma enorme quantidade de energia. A outra possibilidade é a transposição de água das regiões mais úmidas para as mais secas e ainda a coleta d’água de chuva e seu armazenamento em cisternas como já faziam os romanos e os hebreus há mais de dois mil anos.
Acredita-se que algumas guerras desse século serão por água. Israel, Jordânia e Síria negociam desde a década de 1950 pelo controle mais eficiente de seus escassos recursos hídrico. O uso conjunto de reservas hídricas exige interação entre os países interessados. A água também pode ser usada como arma de guerra: a destruição deliberada de represas e aquedutos, além da contaminação de água potável, são métodos que já podem ser utilizados por terroristas contra os militares e a população civil.
Neste sentido, o Brasil pode ser considerado um dos centros do mundo: é um país privilegiado com uma descarga de 5,67 X 1012 metros cúbicos de água por ano (ver tabela). Aqui também se encontram o maior rio do mundo – o Amazonas – com uma vazão média de 200 mil metros cúbicos por segundo e o maior reservatório de água subterrânea do planeta – o Sistema Aquífero Guarani. No entanto, essa água está mal distribuída: 70% das águas doces do Brasil estão na Amazônia, onde vivem apenas 7% da população, e apenas 3% de água no Nordeste semi-árido, onde ocorrem períodos de seca extrema. Como solução parcial, um projeto está sendo desenvolvido com o desvio de água do Rio São Francisco para aquela região. Mas a solução definitiva poderia ser a transposição de água das bacias dos Rios Amazonas e Tocantins, que permitiria o transporte de quantidade muito maior de água, permitindo o estabelecimento de atividades agrícolas econômicas em maiores áreas do sertão nordestino.
No Brasil, o maior problema nas regiões densamente povoadas é a degradação da qualidade da água pela contaminação com esgoto urbano e industrial. Praticamente na maior parte das cidades não existe tratamento adequado para o esgoto coletado e em muitos lugares não existe tratamento algum, ou seja, as águas servidas são descartadas diretamente nos córregos e rios mais próximos.
Além da contaminação das águas doces existe ainda a contaminação continua com a degradação da qualidade das águas do mar próximas as regiões povoadas. É um problema geral no Brasil a falta de tratamento das águas que são lançadas no mar, como exemplo, pode-se citar as praias da cidade de Ubatuba e de Caraguatatuba que praticamente são impróprias para o banho o ano todo. No Rio de Janeiro evidencia-se a contaminação da Baía de Guanabara tornando impróprias as praias internas.
O problema da degradação dos recursos hídricos pela contaminação de águas de esgoto é um problema tecnicamente resolvível, é necessário um maior empenho e trabalhos sistemáticos para sua solução.
Além dos fatos já apontados, deve-se lembrar a perspectiva assustadora da mudança do clima global. À proporção que a humanidade queima mais combustível fóssil, o efeito estufa aquece o planeta e aumenta o ritmo da evaporação. A energia liberada pela condensação do vapor d’água na atmosfera aumenta a frequência dos eventos extremos (chuvas torrenciais, furacões e ciclones).
A falta de água é a principal barreira ao desenvolvimento e um motivo importante para que tantos pobres do mundo continuem pobres. A água limpa e acessível se constitui em um elemento indispensável para a vida humana. Para tê-la no futuro, é preciso protegê-la para evitar possíveis guerras em busca de um elemento antes tão abundante: a água com boa qualidade.
Vale relembrar a Declaração Universal dos Direitos da Água
Art. 1º - A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão é plenamente responsável aos olhos de todos.
Art. 2º - A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Art. 3 º da Declaração dos Direitos do Homem.
Art. 3º - Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimônia.
Art. 4º - O equilíbrio e o futuro do nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende, em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam.
Art. 5º - A água não é somente uma herança dos nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como uma obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras.
Art. 6º - A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo.
Art. 7º - A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis.
Art. 8º - A utilização da água implica no respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.
Art. 9º - A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social.
Art. 10º - O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.
Sugestão de link.
(*) Enéas Salati é Colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre Sustentabilidade. É professor, um dos mais conceituados especialistas em água doce do Brasil e diretor técnico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável – FBDS. (Envolverde/Plurale) |
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