Eu sou a água / que mata a sede /
onde eu não estiver / você se lembra de mim.
Aturi Kaiabi
O mundo inteiro, hoje, está lembrando dela pela falta que faz, mesmo no Brasil, dono de 16% dos rios do planeta. Os rios estão morrendo. Poluição, desmatamento, esgotos e agora a seca de dois verões consecutivos no Sul e no Sudeste provocam escassez de água, que já desapareceu de torneiras da Grande São Paulo. É grave a crise de abastecimento. Os governadores de SP e do RJ promoveram o maior arranca-rabo por causa do plano paulista de bombear o rio Paraíba do Sul para os reservatórios de São Paulo. Parece que chegou a hora da onça beber água.
A viabilidade do plano está aguardando parecer técnico da Agência Nacional de Águas (ANA), já que o Paraíba do Sul, que corre em três estados, é rio federal. No entanto, a guerra verbal da água já fez sua primeira vítima: o governador Alckmin recebeu dos cariocas o título de “ladrão de água”, no sábado, 20 de março, quando se celebra o Dia Mundial da Água, criado pela ONU por decisão da Conferência Rio 92 para conscientizar sobre a necessidade de proteger rios, fontes e suprimentos de água potável. De lá para cá, muita água rolou embaixo da ponte.
O uso inadequado dos recursos hídricos fez com que se começasse a buscar aqueles que mantém relação sadia entre natureza e tecnologia. O conhecimento de índios, povos da floresta, ribeirinhos, quilombolas e caiçaras começou a ser olhado com interesse e respeito, sem preconceito epistemocêntrico. O legado deles mostra que águas passadas podem mover moinhos sim senhor. Um exemplo está no ‘Livro das Águas’, organizado por Maria Cristina Troncarelli, editado pelo Instituto Sociambiental (ISA) e escrito por professores indígenas do Parque do Xingu.
Livro das águas
Um desses professores é Aturi, da aldeia Tuiararé, onde vivem 250 índios Kaiabi, falantes de Kawaiwete, língua da família Tupi-Guarani. Ele alfabetiza as crianças na língua materna e ensina o português como segunda língua, além de realizar pesquisas com seu colega Pikuruk Kaiabi no Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (PRODOCLIN) do Museu do Índio, desenvolvido com apoio da UNESCO. Essa língua, cuja descrição fonética e fonológica está sendo feita, guarda saberes úteis à humanidade.
- Nos meses de setembro e outubro, as cigarras cantam e os primeiros trovões anunciam a chegada das chuvas aos índios do Xingu, que se preparam para receber a água que cai do céu. Nos últimos anos, porém, esses sinais não são mais confiáveis. Os insetos não têm mais força para chamar a chuva. As cigarras cantam e cantam, o dia inteiro, mas a chuva não vem.
Aturi está preocupado com os rios moribundos, cuja agonia já está provocando mudanças climáticas no Xingu, com repercussões sobre a fauna e a flora. Ele conta que o mutum, pássaro que era abundante no Parque Indígena, está desaparecendo. “Antes a gente ouvia o mutum cantar todas as noites. Agora ninguém mais ouve o canto deles. A jacutinga também era uma ave muito comum aqui, mas hoje ela sumiu”.
- Nós moramos na beira do rio. Nossa rua é o Rio Xingu, que é nossa vida. Na piracema, os peixes sobem o rio para desovar em pequenos lagos. Os peixinhos ficam ali esperando o nível da água subir para voltar ao rio e crescer lá. Hoje, o rio demora tanto a subir que o lago seca e peixinhos acabam morrendo antes. É muito triste”.
Rios moribundos
A classificação das águas feita pelos Kaiabi já não é mais aquela que é cantada pela poeta amazonense Astrid Cabral:
- Tem água cor de café / tem água cor de cajá / tem água cor de garapa / tem água que nem guaraná.
A cor da água e sua qualidade estão se alterando. Levantamento feito pela Fundação SOS Mata Atlântica em 96 rios, lagos e igarapés de sete estados do Sul/Sudeste registra que a água de 40% deles apresenta qualidade péssima ou ruim, 49% estão em situação regular e apenas 11% podem ser consideradas de boa qualidade. No Rio, a situação é mais dramática. Coletas realizadas entre março de 2013 e fevereiro de 2014 indicam que 100% das águas estão em condições ruins ou regulares.
O Rio Guandu recebe um bilhão de litros de esgoto doméstico. É cocô que não acaba mais. O esgoto doméstico não tratado, as atividades industriais à beira de rios, o uso de agrotóxicos, os produtos químicos lançados nas redes públicas de coleta de água, o lixo, o desmatamento, a erosão e a redução da faixa de preservação da mata ciliar permitida pelo Código Florestal – tudo isso mostra, como quer a poeta Astrid, que “A água doce / não é tão doce / antes fosse”.
O engenheiro Gilberto Menezes Moraes, um baiano arretado que é professor da Uerj, conta que quando era professor da PUC, seu colega José Carlos Sussekind, ex-Secretário Extraordinário do governo Brizola, advertia que no futuro as guerras por água seriam uma constante. O futuro chegou.
- Você já construiu o seu reservatório extra, no banheiro e na área de serviços? Faça. E cuidado com os ladrões de água – ironiza Gilberto.
Daqui pra frente, a ANA vai ter muito trabalho. E eu aqui pensando no futuro da Ana.