CAMPANHA PERMANENTE
As comunidades precisam investir mais em
planejamento, para evitar desastres ambientais
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3/2/2010
A várzea pertence ao rio
Publicado por http://www.aguaonline.com.br/
Poucas vezes tem-se visto na grande imprensa uma matéria tão oportuna e analítica como a publicada no jornal o Estado de São Paulo e elaborada pelo jornalista Ivan Marsiglia.
Bem a propósito da comemoração, em 02 de fevereiro, do Dia Mundial das Áreas Úmidas. Fugindo da clássica abordagem da culpa da chuva e do rio que invade casas a matéria mergulha nos meandros do processo de urbanização da cidade de São Paulo e que se reproduziu às centenas pelo Brasil afora. E que continua a servir de espelho (errado) a outras centenas de municípios pequenos que um dia sonham em se tornar grandes.
Ela vai aqui reproduzida como uma homenagem à lucidez e clareza da entrevistada e argúcia do repórter que soube trazer à tona as causas subjacentes para o caos urbano que vem se instalando nas cidades brasileiras nestes tempos de mudançcas climáticas.
"Pé d'água, mesmo, não foi. Mas uma chuva compacta e homogênea, a mais volumosa em dois anos, caindo sobre quase toda a cidade de São Paulo durante 24 horas. E a maior metrópole brasileira amanheceu parada e submersa. Foram registrados 105 pontos de alagamento, entre eles as marginais dos Rios Pinheiros e Tietê. E seis pessoas morreram em deslizamentos de terra - no caso mais grave, em Santana de Parnaíba, quatro irmãos de uma mesma família, três deles, crianças.
A tragédia deixou "constrangida e indignada, mas não surpresa" a geógrafa paulistana Odette Carvalho de Lima Seabra. Autora de Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder: O Processo de Valorização dos Rios e das Várzeas do Tietê e do Pinheiros, apresentado como tese de doutorado na USP em 1987, a professora considera corretas as medidas tomadas nos últimos anos para mitigar as enchentes. Mas o sistema já está próximo de seu limite. Odette diz que as políticas públicas destinadas às várzeas dos Rios Pinheiros e Tietê tiveram um protagonista privado: a São Paulo Tramway, Light and Power Company - empresa de capital canadense que energizou o processo de urbanização brasileiro nas décadas de 30, 40 e 50. Afirma que as várzeas onde o governo do Estado assenta obras de ampliação das marginais são parte integrante dos rios - que as requisitam de volta, nas enchentes. E aponta que a solução definitiva passa por mudanças profundas no modo de vida na cidade.
As cenas de inundação na terça-feira surpreenderam a senhora?
Fiquei, como todo o mundo, constrangida e indignada. É insuportável saber que somos obrigados a viver essas tragédias ano após ano. Mas não posso dizer que as imagens me surpreenderam. As medidas que vêm sendo tomadas desde 1999 são corretas. Mas ocorre que a capacidade do Tietê está no limite. A interligação de bacias necessária ao abastecimento de São Paulo faz com que, por exemplo, 33 metros cúbicos por segundo da bacia hidrográfica do Rio Piracicaba caiam aqui.
O solo impermeável da cidade é uma das causas das enchentes?
Também. As chuvas, a cada ano, são mais torrenciais. Há dados mostrando isso. Temos um volume aumentado de água na rede, impermeabilização crescente do solo e ocupação desordenada do rebordo externo da bacia. Eu me refiro à zona leste de São Paulo, à vertente sul da Cantareira, essa porção de colinas, onde têm ocorrido desastres. O solo, lá, é de rigolito, fixo apenas pela vegetação. Com o desmatamento, ainda que seja uma simples abertura entre as casas, tudo fica sujeito a deslizamentos. Além disso, por gravidade, os detritos chegam à calha do rio. Por isso o Tietê tem um trabalho de desassoreamento que não pode parar.
É difícil imaginar Paris sem o Sena, Londres sem o Tâmisa, Viena sem o Danúbio. Que falta faz um rio a uma grande cidade?
O rio é uma referência de lugar e de espaço, integra a identidade de um povo. Quando ele está perdido, como no nosso caso, é uma ausência importante. Vi um documentário que mostrava como os brasileiros voltaram as costas para os rios. Há quem cruze o Tietê quatro vezes ao dia sem se dar conta.
Seu doutorado mostra como as estratégias de ocupação das margens do Tietê e do Pinheiros foram definidas a partir dos interesses da Light. Como isso se deu?
Esse é o rescaldo negativo do imperialismo das grandes empresas nos países subdesenvolvidos. A Light, da qual hoje pouco se fala, provocou uma grande mobilização no Brasil das décadas de 30, 40 e 50. A companhia era uma espécie de polvo, atuando em diferentes esferas. Foi tão importante na história de São Paulo que passou a integrar o imaginário. Aparecia na música, na poesia, na retórica popular. Havia até uma expressão: "E eu com a Light?"
A proximidade das pistas do leito dos rios nas marginais é muito criticada por urbanistas. Por que elas foram parar lá?
Nos anos 60, com o Plano de Metas, foi preciso abrir espaço para circularem os automóveis. Tem início outro padrão e modo de vida. O Estado planejou as marginais e pressionou a Light: "Agora, vamos intervir, porque é preciso modernizar a estrutura de transporte do País". Veja que, até então, em São Paulo andava-se de carroça, bonde ou barco - cerca de 500 deles transitavam no Tietê. Com a entrada da indústria automobilística, o transporte por rio desaparece e o ferroviário entra em declínio. Os bondes saíram de circulação não porque as pessoas não mais os quisessem, mas porque outra opção de transporte foi imposta goela abaixo.
É por isso que senhora diz que "os enigmas do funcionamento da Bacia do Alto Tietê traduzem o modus operandi da modernização geral da sociedade"?
Se a gente tem noção da história, fica ingênuo discutir quem fez as marginais e foi responsável por esses equívocos. Mas, com o partido rodoviário sendo adotado como modalidade de transporte nacional, a sequência só poderia ter sido essa. No caso da Light, é preciso levar em conta também que éramos uma República nova, sem conhecimento de estruturas jurídicas, com uma sociedade pouco aparelhada para negociar com o trust. Não que, por princípio, as pessoas fossem boas ou más. É um processo.
Os moradores mais antigos da cidade têm a memória de um Tietê onde se nadava, praticava remo. Como se transformou em uma "cloaca a céu aberto", como a senhora diz?
Em minha tese, entrevistei um ex-barqueiro, de 96 anos, que passou a vida recolhendo areia do fundo do Tietê para vender. Ele me contou que, em 1935, já não podia mais beber a água do rio, e a levava de casa. Perguntei por quê. "Desde que a Nitroquímica se estabeleceu em São Miguel os peixes começaram a morrer e a gente não podia mais beber a água." Ainda na década de 20, quando a Light obteve o monopólio do Rio Pinheiros, as autoridades decidiram deslocar os barqueiros para o Tietê. Houve processos na Justiça e, num deles, um barqueiro questiona: "Já não dá para tirar areia entre a Ponte Pequena e a foz do Rio Pinheiros, porque o fundo do rio é lodo e esgoto". A contaminação é um processo que vem com a urbanização. Seus efeitos deveriam ter sido domesticados ao longo do tempo, mas ela foi avassaladora e não pudemos raciocinar sobre os problemas que a industrialização trazia.
Dezenas de projetos de ampliação do leito e embelezamento das margens foram realizados em São Paulo, sem que os rios fossem de fato recuperados - como ocorreu com o Tâmisa, em Londres. Por quê?
Primeiro, a gente continua poluindo o Tietê. A poluição industrial foi controlada, mas a doméstica, não. Há um problema de infraestrutura difícil de enfrentar. É muito caro fazer interligação de esgotos. Às vezes, os espíritos românticos maquiam as margens, produzem discursos... Mas a solução ainda está distante.
Ambientalistas dizem que "o carro é o novo cigarro", um símbolo anacrônico de status, a ser banido.
Seria bom mesmo. Mas como agir numa sociedade desse tamanho, com milhões de pessoas circulando para cima e para baixo? Uma pesquisa que fizemos em Parelheiros, no extremo sul da cidade, mostrou que existe gente nascida lá, que já é adulta e nunca saiu da região. Não conhece nem o centro. Chamo isso de confinamento dos pobres. Com tantas carências, como arcar com o custo social de liberar as várzeas?
Fonte: Aguonline - jornalista Cecy Oliveira/Site Tratamento de Água
Bem a propósito da comemoração, em 02 de fevereiro, do Dia Mundial das Áreas Úmidas. Fugindo da clássica abordagem da culpa da chuva e do rio que invade casas a matéria mergulha nos meandros do processo de urbanização da cidade de São Paulo e que se reproduziu às centenas pelo Brasil afora. E que continua a servir de espelho (errado) a outras centenas de municípios pequenos que um dia sonham em se tornar grandes.
Ela vai aqui reproduzida como uma homenagem à lucidez e clareza da entrevistada e argúcia do repórter que soube trazer à tona as causas subjacentes para o caos urbano que vem se instalando nas cidades brasileiras nestes tempos de mudançcas climáticas.
"Pé d'água, mesmo, não foi. Mas uma chuva compacta e homogênea, a mais volumosa em dois anos, caindo sobre quase toda a cidade de São Paulo durante 24 horas. E a maior metrópole brasileira amanheceu parada e submersa. Foram registrados 105 pontos de alagamento, entre eles as marginais dos Rios Pinheiros e Tietê. E seis pessoas morreram em deslizamentos de terra - no caso mais grave, em Santana de Parnaíba, quatro irmãos de uma mesma família, três deles, crianças.
A tragédia deixou "constrangida e indignada, mas não surpresa" a geógrafa paulistana Odette Carvalho de Lima Seabra. Autora de Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder: O Processo de Valorização dos Rios e das Várzeas do Tietê e do Pinheiros, apresentado como tese de doutorado na USP em 1987, a professora considera corretas as medidas tomadas nos últimos anos para mitigar as enchentes. Mas o sistema já está próximo de seu limite. Odette diz que as políticas públicas destinadas às várzeas dos Rios Pinheiros e Tietê tiveram um protagonista privado: a São Paulo Tramway, Light and Power Company - empresa de capital canadense que energizou o processo de urbanização brasileiro nas décadas de 30, 40 e 50. Afirma que as várzeas onde o governo do Estado assenta obras de ampliação das marginais são parte integrante dos rios - que as requisitam de volta, nas enchentes. E aponta que a solução definitiva passa por mudanças profundas no modo de vida na cidade.
As cenas de inundação na terça-feira surpreenderam a senhora?
Fiquei, como todo o mundo, constrangida e indignada. É insuportável saber que somos obrigados a viver essas tragédias ano após ano. Mas não posso dizer que as imagens me surpreenderam. As medidas que vêm sendo tomadas desde 1999 são corretas. Mas ocorre que a capacidade do Tietê está no limite. A interligação de bacias necessária ao abastecimento de São Paulo faz com que, por exemplo, 33 metros cúbicos por segundo da bacia hidrográfica do Rio Piracicaba caiam aqui.
O solo impermeável da cidade é uma das causas das enchentes?
Também. As chuvas, a cada ano, são mais torrenciais. Há dados mostrando isso. Temos um volume aumentado de água na rede, impermeabilização crescente do solo e ocupação desordenada do rebordo externo da bacia. Eu me refiro à zona leste de São Paulo, à vertente sul da Cantareira, essa porção de colinas, onde têm ocorrido desastres. O solo, lá, é de rigolito, fixo apenas pela vegetação. Com o desmatamento, ainda que seja uma simples abertura entre as casas, tudo fica sujeito a deslizamentos. Além disso, por gravidade, os detritos chegam à calha do rio. Por isso o Tietê tem um trabalho de desassoreamento que não pode parar.
É difícil imaginar Paris sem o Sena, Londres sem o Tâmisa, Viena sem o Danúbio. Que falta faz um rio a uma grande cidade?
O rio é uma referência de lugar e de espaço, integra a identidade de um povo. Quando ele está perdido, como no nosso caso, é uma ausência importante. Vi um documentário que mostrava como os brasileiros voltaram as costas para os rios. Há quem cruze o Tietê quatro vezes ao dia sem se dar conta.
Seu doutorado mostra como as estratégias de ocupação das margens do Tietê e do Pinheiros foram definidas a partir dos interesses da Light. Como isso se deu?
Esse é o rescaldo negativo do imperialismo das grandes empresas nos países subdesenvolvidos. A Light, da qual hoje pouco se fala, provocou uma grande mobilização no Brasil das décadas de 30, 40 e 50. A companhia era uma espécie de polvo, atuando em diferentes esferas. Foi tão importante na história de São Paulo que passou a integrar o imaginário. Aparecia na música, na poesia, na retórica popular. Havia até uma expressão: "E eu com a Light?"
A proximidade das pistas do leito dos rios nas marginais é muito criticada por urbanistas. Por que elas foram parar lá?
Nos anos 60, com o Plano de Metas, foi preciso abrir espaço para circularem os automóveis. Tem início outro padrão e modo de vida. O Estado planejou as marginais e pressionou a Light: "Agora, vamos intervir, porque é preciso modernizar a estrutura de transporte do País". Veja que, até então, em São Paulo andava-se de carroça, bonde ou barco - cerca de 500 deles transitavam no Tietê. Com a entrada da indústria automobilística, o transporte por rio desaparece e o ferroviário entra em declínio. Os bondes saíram de circulação não porque as pessoas não mais os quisessem, mas porque outra opção de transporte foi imposta goela abaixo.
É por isso que senhora diz que "os enigmas do funcionamento da Bacia do Alto Tietê traduzem o modus operandi da modernização geral da sociedade"?
Se a gente tem noção da história, fica ingênuo discutir quem fez as marginais e foi responsável por esses equívocos. Mas, com o partido rodoviário sendo adotado como modalidade de transporte nacional, a sequência só poderia ter sido essa. No caso da Light, é preciso levar em conta também que éramos uma República nova, sem conhecimento de estruturas jurídicas, com uma sociedade pouco aparelhada para negociar com o trust. Não que, por princípio, as pessoas fossem boas ou más. É um processo.
Os moradores mais antigos da cidade têm a memória de um Tietê onde se nadava, praticava remo. Como se transformou em uma "cloaca a céu aberto", como a senhora diz?
Em minha tese, entrevistei um ex-barqueiro, de 96 anos, que passou a vida recolhendo areia do fundo do Tietê para vender. Ele me contou que, em 1935, já não podia mais beber a água do rio, e a levava de casa. Perguntei por quê. "Desde que a Nitroquímica se estabeleceu em São Miguel os peixes começaram a morrer e a gente não podia mais beber a água." Ainda na década de 20, quando a Light obteve o monopólio do Rio Pinheiros, as autoridades decidiram deslocar os barqueiros para o Tietê. Houve processos na Justiça e, num deles, um barqueiro questiona: "Já não dá para tirar areia entre a Ponte Pequena e a foz do Rio Pinheiros, porque o fundo do rio é lodo e esgoto". A contaminação é um processo que vem com a urbanização. Seus efeitos deveriam ter sido domesticados ao longo do tempo, mas ela foi avassaladora e não pudemos raciocinar sobre os problemas que a industrialização trazia.
Dezenas de projetos de ampliação do leito e embelezamento das margens foram realizados em São Paulo, sem que os rios fossem de fato recuperados - como ocorreu com o Tâmisa, em Londres. Por quê?
Primeiro, a gente continua poluindo o Tietê. A poluição industrial foi controlada, mas a doméstica, não. Há um problema de infraestrutura difícil de enfrentar. É muito caro fazer interligação de esgotos. Às vezes, os espíritos românticos maquiam as margens, produzem discursos... Mas a solução ainda está distante.
Ambientalistas dizem que "o carro é o novo cigarro", um símbolo anacrônico de status, a ser banido.
Seria bom mesmo. Mas como agir numa sociedade desse tamanho, com milhões de pessoas circulando para cima e para baixo? Uma pesquisa que fizemos em Parelheiros, no extremo sul da cidade, mostrou que existe gente nascida lá, que já é adulta e nunca saiu da região. Não conhece nem o centro. Chamo isso de confinamento dos pobres. Com tantas carências, como arcar com o custo social de liberar as várzeas?
Fonte: Aguonline - jornalista Cecy Oliveira/Site Tratamento de Água
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ÁGUA - QUEM USA, CUIDA!
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